sintomas sociais e racionalidade diagnóstica, com nelson da silva jr. (íntegra)
Sofremos por impotências ou proibições. O conflito estrutural da nossa vida gera sofrimento, mas tratar o sintoma sem levar em conta a história do indivíduo é fazer um tratamento parcial e fadado ao fracasso.
Uma forma de entender nosso sofrimento atualmente é organizada a partir dos diagnósticos do “Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais” (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – DSM), o chamado manual da psiquiatria. Essa ideia diz que o indivíduo tem um problema imediato e deve resolvê-lo o quanto antes para voltar à sua vida, ao trabalho, à família. O sintoma em psicanálise, por sua vez, diferentemente da medicina e do DSM, tem uma potencialidade revolucionária, disse o psicanalista da USP Nelson da Silva Jr. durante o Café Filosófico CPFL sobre “Sintomas sociais e racionalidade diagnóstica”, o segundo do módulo “Mal-estar, sofrimento e diagnóstico”.
“Quando a medicina pensa o sintoma, pensa num problema que já ocorreu. O DSM pensa o presente. O que importa é a identidade do sintoma e seu desaparecimento. Mas uma coisa é pensar os problemas da sociedade como obstáculos. Outra é revelar o que a sociedade não aceita”, disse o especialista.
Segundo Silva Jr., embora o tratamento baseado no presente tenha uma eficácia questionável, a insularização de sintomas, com a eliminação do sentido de busca e da responsabilização do sujeito, é hegemônica na cultura atual. A pessoa que se diz bipolar, exemplificou, o faz como se o transtorno fosse um acidente de percurso, e não algo relacionado ao modo como ela pensa e sofre. “Os problemas do sujeito são entendidos como algo que, se não podem ser eliminados, precisam ser gerenciados. (…) Quando uma sociedade inteira começa a pensar em seus indivíduos como unidades de produção, temos um problema.”
Como afirmou Freud, uma sociedade que passa por um processo de desorganização gera um tipo de sofrimento a seus membros. Esse sofrimento é capaz de levar ao suicídio, como anotou o sociólogo Émile Durkheim. O sofrimento, portanto, tem relação com o mal-estar da civilização a partir de sua (des) organização econômica, histórica e política.
Para que a civilização seja instaurada, diz Freud, a sociedade determia que nossas pulsões sejam canalizadas no trabalho, nas artes, etc. “Em toda civilização há uma renúncia. E uma nostalgia de um estágio de prazer infinito.”
Em seus estudos, Freud notou que, diante dessas proibições, as pessoas tinham culpas e a desproporção entre crimes e castigos o levou a pensar, por exemplo, na natureza da nossa agressividade. Um dos motivos dessa mal-estar tinha como origem a hipocrisia de uma ética baseada nos ensinamentos bíblicos que nos mandava amar uns aos outros como a nós mesmos – algo quase sempre humanamente impossível “Freud percebeu que quanto mais correta a pessoa era, mais culpa ela sentia.”
Hoje, segundo o psicanalista, nossa culpa mudou de figura. Nosso superego nos diz agora que temos OBRIGAÇÃO de nos divertir. Se não estaremos aquém do que precisamos ser. “Hoje a performance sexual é uma meta a ser cumprida. Os critérios de excelência da virilidade começam a funcionar em uma nova chave. As pessoas não sofrem pelos prazeres a que devem renunciar. Mas nas deficiências em relação a ideias. As pessoas sofrem porque gostariam de ser mais altas, de terem um cargo mais bem remunerado, etc.”
As depressões, de acordo com o palestrante, são geradas pelo sentimento de se estar aquém de algo que a gente acha que deveria estar. Nesse sentido, as vozes que, em mobilizações sociais e nas redes, ousam dizer que algo não vai bem são vozes que funcionam. Daí as lutas contra padrões ideais de beleza e normatividade. Os movimentos, segundo Silva Jr., nos forçam a uma discussão. E a uma reflexão. Como a psicanálise.
“Enquanto tudo dá certo, não prestamos atenção nas coisas. Só olhamos para o martelo quando ele está quebrado. É preciso conhecer o contexto social do sujeito, e este contexto inclui cultura, linguagem, valores, famílias, instituições. Tudo faz parte da nossa formação.”
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