dom quixote de cervantes e a crise dos sonhos, com janice theodoro (íntegra)
Dom Quixote e a loucura do homem que vê
No terceiro encontro da série “Os Clássicos e o Cotidiano”, a professora da USP Janice Theodoro relaciona a obra de Miguel de Cervantes com a crise dos sonhos na atualidade
O protagonista é um velho com um escudeiro baixo e desajeitado, um pangaré e uma lança quebrada. Ainda assim, “Dom Quixote” é, provavelmente, o livro mais lido do Ocidente depois da Bíblia. Por quê?
A questão foi abordada pela professora da USP Janice Theodoro no debate “Dom Quixote de Cervantes e a crise dos sonhos”, terceiro encontro da série “Os clássicos e o cotidiano” do Café Filosófico CPFL. O livro, segundo a palestrante, é uma aula sobre como a realidade se transforma em sonho e o sonho, em realidade. Por meio dele há uma defesa do homem justo e da consciência de cada um para o bem comum.
“Quixote não via o moinho de vento como moinho de vento. É porque ele tinha outro moinho de vento na cabeça”, disse. “Quando acreditamos na propaganda para emagrecer dormindo, fazemos igual. Só embarcamos no sonho se ele repercutir em nós.”
A loucura de Quixote, segundo a palestrante, é a loucura do homem que vê. “Se você anunciar tudo o que vê, vai ser considerado louco. O livro nos ensina a ser prudente.” No livro, o escudeiro Sancho Pança brinca com a doidice do seu amo. “Ele se permite isso em uma sociedade sem conceito de igualdade”, explica.
Segundo ela, vivemos em uma sociedade em plena crise de responsabilidades. Hoje os jovens não embarcam mais nas utopias. “A sociedade deu uma dimensão maior para o presente. É o imperativo mais desafiante. O sonho diminuiu a dimensão temporal das projeções. Antes acreditávamos em utopia. Hoje sabemos que não é tão simples”. Ainda assim, pontua, os sonhos sobrevivem. Migraram, por exemplo, para as lutas em defesa da preservação natureza.
A regra, no entanto, é outra. Se na sociedade do século XVI e XVII existia espaço para sonhar com um mundo melhor, em parte devido à influência da moral cristã, hoje precisamos dos bens materiais para nos classificar. “Sem eles, somos invisíveis. Tanto que um juiz precisou usar o carro de Eike Batista para se sentir gostoso. Ou seja: o valor não é mais dado ao espírito da pessoa.”
“Quixote termina deixando como legado, dentro do mundo cristão, que o que nos resta antes da morte é aconselhar bem a quem faz mal”, diz. Essa utopia, segundo a professora, não pode ser confundida, na obra, com ingenuidade. “O ingênuo é incapaz de dar conta ao desafio que vive.”
Segundo Janice Theodoro, o protagonista faz uma leitura possível das virtudes que ele gostaria de viver. E ele aceita a interlocução com Sancho. “A loucura do Quixote é a loucura relativa. Se eu não souber o que é correto, eu não sei como caminhar. Quixote parte da ideia de que se Deus é bom, e que se ele nos deu o mundo, podemos fazer do mundo um bom lugar.”
De acordo com a palestrante, Quixote ensina, sobretudo, a ver o mundo com outros olhos. “Precisamos saber por que não vemos. Precisamos saber por que vamos ao restaurante e ignoramos o mendigo. Quixote nos ensina a enxergar de novo. E nos ajuda a ressoar valores diluídos na sociedade contemporânea.”
Na obra, a morte começa quando deixamos de sonhar. É como se Cervantes dissesse: uma vida sem sonhos é viver em tempos mortos. “É preciso desconfiar de nós mesmos. É preciso rir. Porque na vida cometemos equívocos. É o que Dom Quixote nos ensina. A vida é cheia de tropeços. Então é bom a gente rir.”
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