“Queremos pensar sobre o mundo e criar um mundo diferente”
Os amigos Vinicius Rodrigues e Julio Affonso Branco acordaram cedo na terça-feira, 21/06. Às 4h30, embarcaram em uma vã com um grupo de 14 estudantes, entre 16 e 17 anos, de um colégio de Pirassununga e viajaram 118 quilômetros até o centro de Campinas. Às sete da manhã, eram os primeiros de uma fila que, ao longo do dia, chegou a contornar o quarteirão do teatro Castro Mendes, onde, no início da noite, o filósofo Clóvis de Barros Filho e o historiador Leandro Karnal promoveram um debate no Café Filosófico CPFL especial de lançamento do livro “Felicidade ou Morte” (Editora Papirus 7 Mares).
O grupo conhecia o trabalho dos estudiosos por meio da internet, da TV Cultura e dos debates em sala de aula a partir de discussões promovidas pelo Café Filosófico CPFL. “Gostamos de internet, mas um show ao vivo é diferente”, disse Vinicius, pouco antes do início do evento.
O “show” citado pelo estudante reuniu, nos arredores do teatro, mais de duas mil pessoas, parte deles jovens como eles, para apreciar não um espetáculo de música, mas um debate de ideias. O encontro possibilitou a reunião de amigos improváveis, que se conheceram na fila para o teatro, caso do farmacêutico Ayron Santana, 28 anos, o autônomo Jorge Saracay, 40, e a dentista Maria Cristina Brito, de 59. “É impressionante ver tantos jovens nessa fila. Tenho certeza de que se essa juventude adquirir tantas ideias como as debatidas aqui, vão se tornar pessoas muito bem sucedidas em todos os sentidos”, disse Santana.
Outras cinco mil pessoas acompanharam o evento pelo site do Instituto CPFL.
“Em um momento como este do país, chego a me emocionar em saber que tanta gente veio até aqui para debater ideias”, disse Karnal, professor de história da Unicamp. A sala de aula improvisada no auditório e na praça do teatro, onde era possível acompanhar o encontro por meio de um telão, ficou em silêncio.
Quem passava pelo local se perguntava como era possível reunir tanta gente para acompanhar um debate de filosofia numa noite fria de terça-feira. A resposta estava na plateia. “Eles têm coragem de dizer o que precisa ser dito”, arriscou Julio.
“Queremos professores assim: que não têm medo de expressar uma opinião. Que digam o que nem sempre as pessoas estão dispostas a ouvir”, completou Lucas Toledo, que acompanhava o grupo.
Para Yasmin Sinotti, de 17 anos, o encontro era uma oportunidade rara de participar de um evento gratuito que nem todos têm acesso, sobretudo no interior. “Vivemos um período de carência de ideias, de rejeição à cultura e de cerceamento do trabalho dos professores, principalmente da rede pública, que são advertidos quando abordam temas delicados em sala de aula. Nós temos a sorte de contar com um professor de filosofia que traz determinados assuntos que queremos debater sem tabus em um mundo tão caótico, cheio de preconceitos, agressividade e desinformação. Mas sabemos que muitos não têm essa oportunidade. Muitas escolas não dão prioridade ao ensino de disciplinas como sociologia e filosofia, que nos ajudam a expandir as ideias. Não queremos só ser profissionais que trabalham e não pensam. Queremos pensar sobre o mundo e criar um mundo diferente”, disse a estudante, que pretende estudar psicologia.
Yasmin e os colegas comemoravam o adiamento de uma prova, marcada para o dia seguinte, para poderem viajar até Campinas. Parte deles substituiu a aula de história em sala pela aula de história no teatro. A história da busca dos indivíduos por um ideal de felicidade, tema do livro recém-lançado.
“A felicidade é uma busca constante. É um saco que não se deixará encher”, disse Clóvis de Barros Filho, professor de Ética da USP, em sua fala. “Mas a felicidade pode estar na capacidade de conviver. Na beleza de poder alegrar alguém.”
Do lado de fora, uma multidão de todas as idades observava atenta as reflexões dos professores. Alguns buscavam assento no gramado. Outros permaneciam de pé, abraçados com os pais, amigos, namorados. Até mesmo os funcionários da limpeza urbana interrompiam a tarefa para assistir ao encontro por alguns minutos.
O silêncio só era quebrado pelos aplausos. Ou quando os palestrantes arrancavam gargalhadas do público. Karnal ironizou a busca da satisfação pessoal por meio de livros de autoajuda ao estilo “dez lições para ser feliz”. Clovis recorreu a uma metáfora sobre a maratona de um profissional, que se prepara durante anos, entre estudos, estágios e planos para galgar posição de prestígio no trabalho em busca de uma satisfação que está sempre no passo seguinte até a aposentadoria – ou, muitas vezes, apenas durante o happy hour. “É como correr com uma cenoura à frente”, disse, fazendo rir até mesmo o atendente de uma das 12 estruturas de food truck montadas pela Prefeitura de Campinas para atender o público.
A noite fria se transformou, assim, em um dos maiores (se não o maior) encontros públicos para debater filosofia de que se tem registro.
A felicidade, diria mais tarde Karnal, não é uma fórmula pronta. Os valores e desejos mudam conforme o período histórico e o momento da vida de cada indivíduo. O “segredo”, se há, é múltiplo; está em cada um. A compra dessa fórmula, portanto, pode ser ilusória, e muitas vezes frustrante.
“Sabe o que eu gosto deles?”, disse Julio, já dentro do teatro, feliz entre os mais de 700 espectadores que puderam ver de perto duas de suas referências intelectuais. “É essa ideia, defendida por eles, de que não precisamos ter certezas o tempo todo. Que podemos conviver com as dúvidas. E se questionar sempre.”
Como tinha de ser, o encontro aberto entre dois pensadores para colocar em xeque as certezas em torno da ideia de felicidade deixava as conclusões, literal e simbolicamente, também em aberto. Entre tantas, uma, trazida por Karnal, era unânime: na escuridão da crise que vivemos, cada um ali era uma vela forte, decidida, luminosa e com luz própria. “Este é o país do futuro, e o futuro é de quem ama.”