Onde está nossa humanidade?
É preciso relembrar: mais que negócios, o enfrentamento das mudanças climáticas é garantir a proteção à vida e aos direitos fundamentais
Rodrigo Gerhardt
Reflexo de uma adesão crescente desde a Rio+20, a última conferência sobre mudanças climáticasdas Nações Unidas, em Varsóvia, a COP 19, foi marcada pela grande participação institucional de empresas, nos diversos eventos corporativos realizados em paralelo às negociações dos diplomatas. O entusiasmo pelas amplas oportunidades de negócios em um novo mercado de baixo carbono contrastava com a falta de empenho e ambição em relação ao nível dos acordos oficiais que, como se observou, avan- çaram muito pouco para uma ampla definição de metas em 2015. Porém, tanto o otimismo empresarial quanto o pessimismo dos governos residem na mesma raiz: a visão ganha-ganha, econômica, que tem predominado no entendimento da sustentabilidade – a qual só parece ser possível quando não há prejuízo para nenhuma das partes, em qualquer prazo. A consequência é o fortalecimento de posições resistentes a concessões, ignorando o fato de que o custo de não reagir ou se adotar medidas fracas pode ser fatalmente maior.
Governos evitam assumir responsabilidades, ou a conta, sobre o Fundo Verde do Clima, que pretende financiar a transição de combustíveis fósseis para renováveis (mitigação) e a maior resiliência aos impactos das mudanças climáticas (adaptação) nos países em desenvolvimento. Do lado das empresas, eficiência energética e inovação têm se tornado mantras nos painéis de executivos, que raramente se voltam a discutir alternativas ao business as usual. Juntas, eficiência e inovação chegaram a ser usadas para defender o carvão como tecnologia de baixa emissão em um futuro sustentável.
A posição da associação mundial do carvão, apresentada em paralelo à COP, e referendada pelo ministro da Economia polonês na abertura de um importante fórum empresarial, foi causa de inúmeros protestos e de certa forma ofuscaram uma importante contribuição que a capital polonesa poderia oferecer para elevar o nível e direcionar o foco das negociações: a memória dos 70 anos do levante do gueto de Varsóvia.
A poucos quilômetros do belo Estádio Nacional, onde delegados e negociadores discutiam, comiam e até dormiam, sem pôr o nariz no gelado frio polonês, 380 mil judeus foram confinados entre muros e espremidos sob a fome, doenças e o medo, enquanto eram levados pouco a pouco aos campos de extermínio, durante a Segunda Guerra Mundial. Ao se tornar claro os planos de aniquilação do gueto, pelos nazistas, os poucos sobreviventes se insurgiram. Por quase um mês, resistiram com bombas caseiras, coquetéis molotov e outras armas artesanais, até serem massacrados por 3 mil homens do exército alemão, nesta que foi a primeira reação civil armada à ocupação nazista na Europa, e uma vitória moral humana contra o conformismo e o impossível. Hoje, ouvir essa história é se questionar: onde estava a humanidade das pessoas que cometeram tais atrocidades, das que poderiam ter ajudado e não o fizeram?
A conferência da ONU teve início sob o impacto do supertufão Haiyan, que devastou as Filipinas. O fato gerou discursos emocionados, choro e três minutos de silêncio para as vítimas, mas pouco ou nenhum impacto nas decisões. No dia seguinte ao anúncio de greve de fome do principal negociador do país, pedindo por mais ação, a ONG alemã Germanwatch divulgava a última edição do seu relatório Climate Index Risk: mais de 530 mil pessoas perderam a vida em cerca de 15 mil eventos extremos entre 1993 e 2012, além de perdas superiores a US$ 2,5 trilhões. Nos últimos 20 anos, as dez nações mais afetadas são países em desenvolvimento.
Os rebeldes do gueto de Varsó- via não receberam ajuda porque muitos países, Estados Unidos principalmente, afirmaram não acreditar nas notícias iniciais sobre o extermínio em massa de judeus. Em relação aos guetos do clima, já não há mais espaço para dúvidas. Estudos apontam que, por inundações ou secas, 150 milhões de pessoas terão de deixar os locais em que vivem em 2050 – quando haverão de se rebelar? Diante da urgência e da profunda transformação que as mudanças climáticas impõem, os direitos humanos devem ser farol no espesso debate técnico do clima. Humanizar para sensibilizar, na tentativa de que a visão ganha-ganha saiba fazer concessões quando preciso, para que o descompasso que existe hoje entre ciência e política seja diminuído. Nesse sentido, áreas do conhecimento como as artes, a comunicação e o marketing do consumo, que tocam diretamente mentes e corações da sociedade de forma rápida, têm papel enorme e devem ser mais exploradas.
No âmbito corporativo, do mesmo modo, empresas poderão aumentar em muito a contribuição que já fazem ao fortalecer e dar mais transparência aos seus programas e políticas de responsabilidade socioambiental. Eficiência, inovação e transformações tecnoló- gicas são cruciais para o avanço da mitigação de emissões e inegáveis oportunidades de redução de custos e novos negócios. Mas, diante de um desafio que vai além de questões técnicas, precisam ser orientadas pela premissa maior que deu origem a todo esse movimento: garantir os direitos humanos e a proteção à vida. Assim, no futuro, talvez não sejamos igualmente questionados: onde estava a nossa humanidade?