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das folhas às pedras: perigos da cocaína e do crack, com paulo j. cunha (íntegra)

“A cocaína sequestra o sistema de recompensa cerebral. A pessoa não consegue ter mais prazer em outras situações”

Na palestra “Das folhas às pedras: os perigos do crack e da cocaína” do Café Filosófico CPFL, o neuropsicólogo Paulo J. Cunha analisa o boom do uso da droga no mundo contemporâneo e suas consequências

É fácil perceber no usuário os efeitos do álcool e da maconha. No caso da cocaína, não. No início o usuário interage melhor. Produz mais. Tem a sensação de estar sempre descansado. Aos poucos, a droga, que age no chamado circuito de recompensa cerebral, onde é reconhecida a sensação de prazer, sequestra completamente a pessoa. E nada, além do seu consumo, será prazeroso.

“A cocaína sequestra o sistema de recompensa do cérebro. A pessoa não consegue ter mais prazer em outras situações. É como se o cérebro dissesse: ‘eu te permito voltar a ter prazer se você voltar a usar cocaína’. Muitas vezes o namorado deixa de sair com a namorada para usar cocaína. É uma substituição de prazeres”, afirmou o neuropsicólogo Paulo J. Cunha durante o Café Filosófico CPFL sobre “Das folhas às pedras: os perigos do crack e da cocaína”. O debate é parte do módulo “Do hedonismo à adicção: as drogas no mundo contemporâneo”, que tem a curadoria do psiquiatra Arthur Guerra.

Segundo Cunha, existem 20 milhões de usuários de cocaína e crack no mundo. “É a região metropolitana de SP inteira.” Para atender tanta gente, seriam necessários 66,6 mil voos para distribuir a droga para os usuários em todos os continentes. “Em 10 anos, houve um aumento de 7 milhões de usuários de cocaína e crack, segundo a ONU. No Brasil, em 4 anos, os pedidos de afastamento do trabalho por uso de cocaína cresceram 84,6%. INSS gastou R$ 206 milhões no período.”

Os números serviram para ilustrar a gravidade da situação. “Artistas, estudantes, políticos: há muitos segmentos da sociedade viciada em cocaína. Hoje o acesso à droga é muito fácil. Há serviços de entrega por telefone.”

Cunha analisou a mudança da aceitação da cocaína ao logo dos anos. Lembrou, por exemplo, que Sigmund Freud era um entusiasta do uso da droga e demorou a reconhecer seus malefícios. “Não faz muito tempo, em 1984, havia psiquiatras que ainda diziam que a cocaína não faria mal se usada 3 vezes por semana. Para muitos, causava apenas dependência psicológica”

O boom da cocaína e do crack, segundo o especialista, coincide com a emergência da Aids, quando as pessoas passaram a evitar drogas injetáveis para reduzir os riscos de contraírem HIV. “O poder do crack, surgido nos anos 80, trouxe muita dependência muito rapidamente. É uma droga que produz efeito em 8 segundos.”

Como é uma droga que atua no cérebro, com a contração de vasos sanguíneos, o usuário passa a sofrer, ao longo dos anos, uma série de lesões, como pequenos AVCs. “Atenção, memória, fluência verbal e tomadas de decisões são funções afetadas por pacientes usuários da droga.”

Para Cunha, é um mito pensar que não vale a pena tratar a pessoa que não quer ser tratada. “Muitas não têm como decidir. A pessoa não precisa chegar ao fundo do poço para querer ser ajudada. Um exemplo é o que aconteceu com a Amy Winehouse, que se negava a ser tratada. Em muitos casos, a internação é necessária. Não é garantia de sucesso, mas a pessoa pode precisar.”

Ele criticou o discurso comum de que não há o que se fazer com o usuário quando ele sofre uma recaída. “A dependência crônica da cocaína é uma doença como as outras. Quando o hipertenso come churrasco ninguém desiste dele.” E citou resultados de um estudo baseado no jogo de xadrez para combater o vício: como no tabuleiro, é necessário se antecipar à jogada do adversário para avançar. Para isso, basta saber o que acontecerá com o corpo no dia seguinte ao uso da droga, a exemplo do usuário de álcool que deixa de beber porque não quer sentir ressaca.

Para o neuropsicólogo, a prevenção ao uso da droga passa por um debate constante na sociedade, a começar nas escolas. “A droga pode ser discutida em aulas de química, história, matemática.”