América Latina obra a obra
Por Juan Darío Restrepo Figueroa*
Assim como propõe o diário de viagem de Simone de Beauvoir, A América dia a dia, a exposição composta por obras da Coleção FEMSA também propõe uma viagem pela arte na América Latina, cujo itinerário seleciona onze países como pontos de passagem e nos permite desfrutar da obra de quarenta artistas. Como Beauvoir, iniciamos uma aventura que nos leva a terras distantes, saboreada pela pintura, pelo desenho, pela fotografia, pela escultura e pelas instalações. Dispostos a sulcar a acidentada geografia do continente, a curadoria quis penetrar na pele da América Latina “en busca de lo propio”#.
Retomando a premissa proposta pela historiadora da arte Ivonne Pini, evitamos estabelecer generalidades a priori em torno da ideia do “próprio”, e potencializamos as particularidades nas diversas propostas que se realizam em cada obra exposta para vislumbrar as aproximações perfiladas pelos artistas na busca dessa esquiva noção de pertencimento em nossa açodada travessia.
Em nosso caso, a metafórica viagem é um pequeno “Grand Tour” que dista do fenômeno originado na Inglaterra no final do século XVI e aperfeiçoado durante o século XVIII, em que se desenvolveu ao máximo o colecionismo de arte como meio de educação sentimental para os jovens da elite que partiam rumo ao continente europeu após finalizarem seus estudos. Na América Latina, no final do século XIX, começou-se a viajar para o antigo continente com o afã de adquirir obras de arte, já estando bem estabelecidas as novas repúblicas que haviam se tornado independentes no princípio do século. Esta versão do “Grand Tour” também é compartilhada pelos Estados Unidos, podendo ser considerado um fenômeno cultural de aproximação às civilizações mais antigas da Europa por parte dos americanos. É precisamente a época em que se começam a formar as coleções particulares norte-americanas mais importantes, que logo terminariam sendo a base de muitos museus nacionais#.
A Coleção FEMSA é herdeira do colecionismo empresarial norte-americano e faz parte desse reverso na dinâmica do “Grand Tour” ao se interessar pela arte produzida em nosso continente. A viagem é uma aproximação às próprias civilizações nos séculos XX e XXI com espírito autorreflexivo, em que o turista é uma Associação Civil colecionista.
A viagem se inicia no México, país de origem e fonte da Coleção FEMSA. Por ser a primeira escala, como viajantes, utilizamos o tempo para reconhecer treze artistas. A viagem se inicia com a esplêndida vista panorâmica da Torre Latino-americana elaborada por Damián Ortega e termina no Uruguai em frente a uma Construção de Joaquín Torres García.
Com a curiosidade própria do viajante que quer dominar e desfrutar o trajeto antes de sua partida, recorremos a uma voz experiente, a crítica argentina Marta Traba, que, em suas conferências, artigos e publicações, falou de quase todos os artistas sincrônicos incluídos nesta exposição e que, além disso, previu há cinquenta anos no prefácio do livro La pintura nueva en Latinoamérica o seguinte: “Não existe pessoa de média cultura que não esteja ciente dos movimentos artísticos e culturais europeus, e também dos norte-americanos. A América Latina, ao contrário, é um terreno inédito. Percorrendo-a de norte a sul e de leste a oeste, experimenta-se o puro prazer do descobrimento; é possível perceber quantas mentiras e quantas ficções se acumularam sobre sua pequena história cultural. E também da força e valor verídicos que revestem as poucas obras que podem ser resgatadas intactas entre tanta conversa laudatória vã#.
Ao longo do século XIX, a formação da imagem visual da América Latina esteve a cargo dos viajantes europeus; apenas na metade do século XX o olhar começou a se distanciar do eurocentrismo. Começaram, então, a se consolidar processos de autoavaliação, colecionismo, investigação crítica, exibição e musealização da arte “própria”. Com os trabalhos, quase neurose pós-colonialista do final do século, também impregnados na esfera artística, resulta quase risível reconhecer que o divisor de águas expositivo que deu as boas-vindas à arte da América Latina no século XXI estava organizado pelo Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofía em Madri, Espanha.
Com clara ressonância à popular frase de Joaquín Torres García “o sul é nosso norte”, a programação 2000-2001 denominada Versões do sul apresentou cinco exposições temporárias: Eztétyca del sueño, Heterotopías; Medio siglo sin lugar: 1918-1968, No es sólo lo que ves; Pervirtiendo el minimalismo; Más allá del documento e F(r)icciones. Todas elas tiveram a curadoria de latino-americanos que, nas palavras dos organizadores, não resumem “a fragrância da arte latino-americana […] mas, pelo menos, são suficientemente significativas e expressam pontos de vista dos próprios latino-americanos”#.
Na América Latina do século XXI, a formação da imagem visual parece estar em nossas próprias mãos. A realidade da América Latina não é negada, inclusive hoje em dia, como fazem alguns intelectuais africanos com a noção de África, considerada uma invenção colonial. A autoconsciência de pertencer a uma entidade histórico-cultural mal chamada América Latina se mantém, mas problematizando-a. Não obstante, o “What is Africa?” de Mudimbe, aumenta cada dia a sua vigência transferido à nossa realidade: O que é a América Latina? Entre outras coisas, uma invenção que podemos reinventar, afirma com precisão o historiador e curador cubano Gerardo Mosquera, que também observa:
“Com frequência não se olham as obras: primeiramente pedem seus passaportes e revistam as bagagens ante a suspeita de algum contrabando de Nova York, Londres ou Berlim. Os passaportes frequentemente não estão em ordem, pois respondem a processos de hibridismo e apropriação, em resposta a uma longa e multifacetada situação pós-colonial. Suas páginas aparecem repletas de ressignificações, reinvenções, “contaminações” e “incorreções”, desde os tempos do Barroco. Ainda mais em nossa época, marcada por tanta transformação e hibridismo cultural, quando ocorrem complexas readequações das identidades enquanto as margens se tornam porosas e mutantes”#.
Os estudos de Marta Traba, Damián Bayón, Gerardo Mosquera e Ivonne Pini, entre outros, readequaram essas identidades e com isso facilitaram a destruição dos estereótipos, bem como a leitura de uma época ‘pós-utópica’ e, como dizia Simone de Beauvoir, “refletem a existência deste demiurgo de sonhos imperiosos”.
A ideologia da arte contemporânea quase instintivamente recusa a noção de permanência ou, pelo menos, discute-a. O relevo geracional que se esboça nesta exposição temporária vai mais além de patentear um “look latino-americano”. Gerardo Mosquera reconhece como os novos artistas parecem menos interessados em mostrar o passaporte, o que importa é a prática artística como criadora de diferença cultural: O México é muito mais que Diego ou Frida, e a Colômbia é muito mais que Botero!
Vivemos rodeados por objetos que, se tivessem uma história, a teriam desgastado por serem submetidos a constantes jogos de impertinentes contextualizações e descontextualizações. A Coleção FEMSA pretende expor-se e completar-se sistematicamente, como acontece com as coleções dos museus, embora a maioria dos colecionadores a hierarquizem só a posteriori, frente à extravagante pulsão do catálogo. Defendendo “essa ideia de coleção como conjunto aberto, definido a partir do que falta, é difícil decifrar o que falta ao rememorar se a lembrança implica sempre o esquecimento”#.
Como viajantes neste pequeno “Grand Tour” pela América Latina, dividimos as perguntas presentes no diário de viagem de Beauvoir ao visitar o Museu da Sociedade Histórica em Los Álamos, Novo México, quando observou as peças expostas: “[…]tão sedutoras, tão diferentes e semelhantes em sua diversidade, de sedução tão vazia, colocam em nosso coração uma espécie de fadiga. O que se guarda de uma viagem? O que nós levaremos que tenhamos feito verdadeiramente nosso? Por que razão observamos? Para que olhar?”#.
*Curador convidado