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Alexandre Costa | A valorização do corpo no pensamento contemporâneo

por Fernanda Bellei

A valorização do corpo no pensamento contemporâneo – palestra do filósofo Alexandre Costa, realizada em 30 de outubro de 2008, fechou o módulo O futuro do corpo, que teve curadoria da nutricionista Luciana Ayer.

O século XX assistiu a uma crescente valorização do corpo, propiciando igualmente uma série de reflexões acerca da questão do prazer. Este fenômeno histórico relaciona-se com o advento do pensamento filosófico contemporâneo, cuja origem remete ao século XIX e á rigorosa crítica que a filosofia metafísica sofre por parte de autores como Nietzsche e Marx. Pensando em um mundo sem Deus e um homem sem alma, cabe a esse pensamento circunscrever ao corpo e às suas potências toda a realidade humana.

Você cita que o século 20 assistiu a uma crescente valorização do corpo, propiciando outros tipos de comportamento e relações com o prazer. A que isso se deve? Como os pensamentos e discursos de Nietzsche e Marx influenciaram nessa mudança?
O acontecimento histórico e filosófico que alça o corpo ou a corporeidade do ser humano a uma crescente valorização remete, a meu ver, à contundente crítica sofrida pela metafísica a partir dos meados do século XIX, destacando-se entre eles nomes como os de Nietzsche e Marx. A fundação da psicanálise, por parte de Freud, e a sua proposta de ultrapassar a clássica dicotomia entre corpo e alma, unindo-as numa única palavra e conceito – o psicossomático (psique + soma, respectivamente alma e corpo em grego) – inclui-se como outro passo absolutamente determinante nesse processo. Essa referida crítica, tendo culminado na morte de Deus e na crítica ao Cristianismo como doutrina orientadora de valores morais e políticos ora abandonados, exige igualmente uma superação do pensamento metafísico como um todo, implicando uma reavaliação de todos osseus demais alicerces. Um deles sempre esteve em torno àquestão da alma que, mormente a partir de Descartes, não só mantém o seu cariz metafísico e suprasensível como passa a constituir o "lugar" com o que e pelo que se justifica a questão da subjetividade. Alijada e mesmo negada pela imensa maior parte das correntes filosóficas do século XX, a idéia de alma volatiza-se de vez até o seu desaparecimento. Vencido o dualismo separatista de corpo e alma por rejeição a esta, a integridade do humano circunscreve-se então a um corpo e será também nele que se há de situar os eventuais discursos sobre uma ainda possível "alma" que, neste caso, tal como no aludido contexto freudiano, perde sua conotação religiosa e metafísica e atrela-se indissociavelmente à natureza do corpo e de suas potências. É importante frisar que a valorização do corpo inclui, portanto, a atribuição a ele de muito daquilo que anteriormente se atribuía à alma. Valorizar o corpo significou ampliar o seu conceito, compreendendo-o muito além de um mero espaço físico ocupado por um conjunto de órgãos, pois passa a ser nele o lugar em que se dão, se realizam e se manifestam não só as suas aptidões e contingências físicas, mas também e sobretudo o conjunto complexo de reciprocidade e interrelações entre as emoções, a sexualidade, os sentimentos, os pensamentos e os desejos do homem, tornando assim a noção ou mesmo conceito de "corpo" em algo eminentemente rico e literalmente complexo; muito distante, portanto, da sua concepção como mero instrumento transitório e deficiente a ser dirigido por uma alma puramente intelectiva, intangível e eterna.

Se o foco da humanidade agora é o corpo e o mundo sensível, porque é que as pessoas ainda o negligenciam? Como a filosofia analisa este comportamento?
Não sei se faria esta afirmação. Entre o que ocorre na história da filosofia e do pensamento em geral e a sua assimilação por parte das sociedades percebe-se freqüentemente um grande hiato. Não apenas em termos temporais, dado o caráter processual e geralmente lento que faz com que uma idéia encarne junto à coletividade como oriente de suas decisões de pensamento e comportamento. Mas também em termos da própria "pureza" do conceito que, durante esse referido processo, mistura-se a tantos outros já historicamente enraízados, de onde não raro resulta portanto uma grande confusão, conciliando-se muitas vezes o inconciliável. Não é difícil encontrar, por exemplo, mesmo no âmbito dos que apreciam e cultivam a filosofia, um nietzscheano cristão, o que em tese deveria ser uma contradição em termos. Por isso, não ousaria dizer que "o foco da humanidade é agora o corpo e o mundo sensível". Claro que essa mudança na ordem do pensamento filosófico propiciou essa possibilidade que, mesmo em meio à aludida confusão, fomentou uma série de transformações desde então, sobretudo comportamentais, que por sua vez resultaram principalmente daassunção não-moralizada e não-moralizante do prazer. Em contrapartida, uma simples olhadela para o nosso país e nossas gentes atesta o quanto o pensamento de caráter metafísico e também religioso mantém-se assazmente vigoroso, estabelecendo sem dúvida os valores e as concepções predominantes da nossa sociedade.

Além disso, mesmo se considerados aqueles que pensam e agem emsintonia ou proximidade à revolução do pensamento filosófico queteve como uma de suas muitas conseqüências a referida valorização do corpo, mesmo para eles vale também a complexidade das experiências vitais, que muitas vezes podem determinar perfis psicológicos em que fenômenos como impulsos autodestrutivose carência de amor próprio, por exemplo, redundam em descuido quanto ao bem estar do corpo e à intergidade da vida. Como se vê, é completamente impossível reduzir uma tal questão a um único eixo ou uniformizá-la de qualquer forma.

Existe alguma relação entre essa negligência auto-destrutiva e o conceito de suicídio no absurdo camuniano?
Não. E digo "não" não por considerá-lo de todo impossível. A leitura de Camus pode ter estimulado algum suicídio? Pode. Como também pode a visão de alguma cena banal cotidiana. O cego mascando chicletes de Clarice Lispector também. De modo que estabelecer uma relação direta entre uma coisa e outra é absolutamente equivocado e irresponsável. De resto frise-se que a indicação do tema do suicídio como a única questão genuinamente filosófica justifica-se em Camus exatamente em prol da legitimação e valorização da vida. À pergunta se a vida vale a pena a despeito de todas as suas vicissitudes existenciais, o escritor francês responde com um sonoro sim em seu "o mito de Sísifo".

Como o pensamento de Heidegger, sobre o cuidado constante com nosso corpo, se relaciona com esse tema?
Para ser exato, Heidegger não emprega o termo corpo quando trata da sua idéia de cuidado. Utiliza um dos termos centrais do seu pensamento, Dasein, o que indica o quanto que o eventual emprego do termo "corpo" aqui deve ultrapassar em muito a sua compreensão mais rasa e corrente. A ele relacionam-se todos os eventos e circunstâncias da vida humana. Voltando especificamente a Heidegger, porém, em "ser e tempo" a analítica existencial de Dasein aponta o cuidado como o modo permanente de procedimento, ainda que inconsciente, de Dasein. Isto porque a este pertencem finitude e mortalidade, pelo que zela constantemente no intuito de preservar-se e guardar-se desse risco sempre iminente e portanto contínuo. A fim de manter sua integridade e seu projeto de vida, esse Dasein existencial, identificado com o homem, cuida e zela de si como modo perene de seu estar no mundo.