A vida está baseada em fatos reais. Cinema e a Construção do Espectador
Alguns filmes, que não são documentários, acrescentam a informação de que foram baseados em fatos reais. Trata-se de um apelo de marketing, mas caberia perguntar por que saber disso faz diferença na hora de ir ao cinema. Tudo se passa como se nos fosse poupado o trabalho de “suspender a descrença” de que falava Coleridge. Podemos crer no que nos é mostrado, por mais inverossímil que pareça, porque nos foi dito que tudo isso aconteceu mesmo.
A tarja “baseado em fatos reais” ajuda a esquecer melhor que não existe fato que não seja apreendido mediante uma interpretação. O “fato puro” não passa de uma ilusão. A biografia, o documentário ou o jornal diário, televisionado ou não, não apresentam fatos brutos, mas respondem a regras de composição; são um gênero entre gêneros. Gênero que se pode imitar, até tal ponto que uma fraude consiste precisamente em iludir os peritos, que chancelam a ficção com o selo do verdadeiro.
O clichê “a vida imita a arte” toca no mesmo ponto, só que pela contramão: é tão difícil de se acreditar que parece inventado. Guy de Maupassant dizia que “a verdade não é verossímil”, para se poder acreditar em algo não basta com que seja real, deve ser contado direito, segundo as regras de um gênero. O diabo é que qualquer coisa apresentada do bom modo será acreditada.
Que melhor do que o cinema, que joga em cima da máxima “ver para crer”, para interrogar esta identidade entre a vida e a arte, sugerida pelo mencionado chavão? Costuma-se lembrar que o cinema nasceu com o século vinte, junto com a psicanálise, sem ver aqui nada além de uma coincidência. Ora, se são contemporâneos é menos por terem sido inventados ao mesmo tempo que por operarem em cima do mesmo material: a realidade configurada mediante imagens, segundo precisas coordenadas simbólicas. O cinema, entretanto, trabalha a imagem para fingir uma realidade, enquanto a psicanálise desmonta a realidade para revelar o trabalho de imagens com que foi fabricada.