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A tortura, a escuridão e a ignorância

A tortura, a escuridão e a ignorância

Mais de 40 anos após ser torturado e trancado em “geladeira” da Polícia do Exército, compositor Paulo Chagas apresenta no sábado, 25/10, um concerto na CPFL Cultura inspirado em sua experiência

A “geladeira” era uma construção sofisticada. Destinada à tortura de presos políticos durante a ditadura, o cubículo escuro de paredes revestidas com isolamento acústico e ar condicionado tinha aproximadamente 2 metros por 2. “Tinha a sensação de estar no interior de uma câmara frigorífica e em um mundo de trevas. Atrás de um visor estavam os torturadores e, dentro das paredes, havia um sistema de alto-falantes”, recorda-se o compositor Paulo Chagas, baiano de 60 anos nascido em Salvador, crescido no Rio e hoje professor da Universidade da Califórnia. Ele tinha 17 anos quando foi levado ao cubículo, instalado no quartel da Polícia do Exército no Rio de Janeiro, em 1971.

“No início, os alto-falantes projetavam as vozes dos torturadores que, aos gritos e palavrões, faziam constantemente ameaças. As vozes e gargalhadas misturavam-se a um turbilhão de sons e ruídos. Havia um receptor de rádio analógico com o qual os torturadores tentavam sintonizar uma estação. As modulações de frequência e de amplitude produziam distorções irritantes, estridentes. Havia também outros ruídos, como máquinas, motores, serras elétricas, sirenes, motocicletas, marteladas, etc. Era uma sinfonia caótica de sons concretos e eletrônicos, penetrantes e insuportáveis.”

A geladeira, lembra o compositor, era um método sofisticado de tortura acústica e psicoacústica, inventado justamente para não deixar marcas no corpo. “As vibrações sonoras agrediam o ser como um todo, tanto o corpo como a mente. Essa experiência de tortura ficou marcada na minha memória como um indício da força do som: as vibrações acústicas têm o poder de penetrar nas nossas moléculas mais interiores, fazendo todo o corpo vibrar”, descreve Chagas em suas “Notas Preliminares sobre A Geladeira”. “Chega a ser mesmo um paradoxo o fato de ter me tornado compositor e ter-me dedicado à composição de música eletroacústica, que explora o ruído como fonte de criatividade musical.”

A experiência de tortura, relata Chagas, permaneceu adormecida no inconsciente durante mais de 40 anos. As primeiras aproximações ocorreram em 2004, quando ele vivia na Alemanha e realizou uma instalação interativa intitulada Blind City (Cidade Cega) em colaboração com Johannes Birringer, baseada no livro O Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago. “A leitura de Saramago trouxe à tona a minha experiência individual de tortura. A ditadura brasileira foi um regime de trevas. Durante mais de 20 anos vivemos uma situação de cegueira coletiva e aprendemos a sobreviver aos mecanismos diversos de opressão.”

A experiência deu origem, anos depois, à concepção do oratório digital A Geladeira, apresentada pela primeira vez em 8 de abril de 2014 no Centro Cultural São Paulo (CCSP) em memória dos 50 anos do golpe civil-militar de 1964. A obra será executada novamente em 25 outubro, durante o concerto “Tortura e Transcendência”, às 20h, com entrada gratuita, na CPFL Cultura. O concerto é parte do módulo “Música Sob Pressão – A Criação Contemporânea no Estado Novo e na Ditadura de 1964-1985” do programa Música Erudita Contemporânea, que tem a curadoria do jornalista e crítico musical João Marcos Coelho. O programa mostra como a música foi domesticada e reprimida conforme a conveniência dos regimes.

“Pode-se lamentar que Villa-Lobos tenha flexionado gentilmente sua coluna vertebral construindo um projeto coral para o Estado Novo de cores fascistas. Mas devemos, por outro lado, comemorar que um compositor como Paulo Chagas coloque em uma impactante criação musical a tortura que sofreu aos 17 anos, na década de 60, a mais repressiva da ditadura”, diz o curador.

Autor do livro “Música e Cultura nos Anos de Chumbo” (Algol Editora), finalista do Prêmio Jabuti de 2009, Marcos Coelho diz ter ficado “chocado” ao assistir à primeira apresentação de A Geladeira. “No palco está uma história que está mais viva do que nunca no noticiário de 2014”, escreveu à época. Para ele, “o futuro verá ‘A Geladeira’ como obra de arte, e não apenas como documento político”.

A obra, de 39 minutos, foi composta em dois meses. O primeiro passo foi escrever um libreto que funcionasse ao mesmo tempo como texto para as vozes e roteiro para a composição musical. “O libreto descreve a minha experiência pessoal de tortura na geladeira e propõe uma reflexão sobre a tortura de uma forma geral. A tortura é associada à escuridão da ignorância, à dor e ao sofrimento do torturado; a geladeira é exposta como a máquina de tortura que representa a logística de violência e crueldade.”

Mais do que um libelo contra a realidade desumana e degradante da tortura, diz o autor, A Geladeirapropõe um movimento de transcendência. “É um percurso de elevação para superar a escuridão da ignorância. Esse percurso é também um movimento de elevação, como a luz radiante que dispersa as trevas. A obra resgata memórias da tortura que sofri dentro da geladeira – impressões, situações, emoções e sentimentos –, mas ao mesmo tempo reflete sobre a realidade da tortura que está fora da geladeira”.

Segundo Chagas, a tortura não é privilégio de regimes ditatoriais nem é praticada somente por indivíduos abjetos. “A crueldade está disseminada nas práticas de encarceramento – como a tortura de prisioneiros comuns no Brasil – e resulta também de sistemas sofisticados de uso poder e força militar – como a tortura amplamente praticada pelo imperialismo dos Estados Unidos. A tortura física, a tortura psicológica e outras formas de torturas incorporaram-se à banalidade do horror no mundo contemporâneo. A tortura é algo que existe dentro de nós, uma característica universal da raça humana.”

25/10 | sáb | 20h

tortura e transcendência

regência: paulo c. chagas

núcleo hespérides – música das américas

intérpretes: maria lúcia waldow (mezzo-soprano), ademir costa (barítono), eliane tokeshi (violino), ricardo kubala (viola), ji yon shim anderson (violoncelo), rosana civile (piano), joaquim abreu (percussão), vitor kisil (sons eletrônicos)

local: auditório umuarama | cpfl cultura (rua jorge figueiredo corrêa, 1632, chácara primavera, campinas – sp);
entrada gratuita, por ordem de chegada, a partir das 19h. vagas limitadas;
informações: (19) 3756-8000 ou em www.cpflcultura.com.br;