mal-estar, sofrimento e sintoma, com christian dunker (íntegra)
Para entender o Brasil, é preciso imaginá-lo como um agente que sofre, vive às voltas com o mal-estar e é capaz de produzir sintomas. Um desses sintomas é a nossa vida em condomínio, uma representação da psicopatologia de um país entre muros: os muros dos diagnósticos da escola, da Justiça, das avaliações nas empresas, do trabalho em forma de projetos.
Autor de “Mal-estar, sofrimento e sintoma”, o psicanalista Christian Dunker falou sobre o tema no Café Filosófico CPFL de sexta-feira, 08/05/15 (vídeo abaixo).
Segundo ele, essa psicopatologia foi pensada pela primeira vez o conto “O Alienista”. “Machado de Assis foi o primeiro autor a pensar o Brasil entre muros”, disse. Simão Bacamarte, lembrou, queria purificar o espaço público internando os loucos da cidade de Itaguaí. É a alegoria de uma diagnóstica social sobre uma mania: a tentativa de exclusão do outro.
Para se compreender essa mania, é preciso retomar a história da psicanálise no Brasil. Segundo Dunker, ela chega ao país no momento em que, nos anos 30, o Brasil começava a pensar a si mesmo. A psicanálise está presente nas obras de Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Holanda. Contra o discurso racista, comum à época, a psicanálise é bem-recebida também no universalismo da pena de Mário e Oswald de Andrade.
Já nos anos 40/50, os debates se pautaram na ideia de “caráter do Brasil”. A ideia de caráter é associada à história de nossos conflitos. Nosso caráter são as nossas cicatrizes, como a escravidão.
Nos anos 60, deixamos pra trás a discussão sobre mistura/não mistura dos povos. É quando Nelson Rodrigues cunhou a expressão “síndrome de vira-lata”. Naquele momento, já não sofríamos pelo dilema de nosso caráter melhor/pior, mas pelo subdesenvolvimento econômico. Surge então um discurso econômico/moral.
É quando começamos a investigar por que as crianças aprendem ou não na escola. O desenvolvimento individual torna-se um processo correlato ao desenvolvimento econômico.
Após o golpe, o Brasil passa a ser um paciente com um pedaço mal-digerido de sua História. Apesar dos esforços de grupos como a Comissão na Verdade, não houve até hoje um ajuste de conta com esse passado. Mas, para compreender nossos sofrimentos e sintomas atuais, é preciso voltar àquele período.
Não por coincidência, é nos anos 1970, auge da ditadura militar, que a ideia das moradias em condomínios passa ser considerada uma ideia de status e paraíso. O primeiro desses condomínios de luxo chama-se “Alphaville”, mesmo nome de um filme de Godard. Neste filme, o cineasta francês dava vida a uma distopia: um “mundo perfeito”, mas cheio de regras. Entre as regras estava a proibição dos afetos e dos sentimentos.
“O preço que a gente tem a pagar para que as coisas funcionem, é a exclusão. Como fez Simão Bacamarte”, afirmou Dunker.
Este é o mote do neoliberalismo que passa a se desenvolver no período subsequente: nada fica de fora da economia. Nem mesmo o direito à educação/saúde/cultura.
Dessa maneira, o sonho de consumo dos brasileiros a partir dos anos 1960 são os condomínios, onde, segundo a propaganda, todo dia era domingo e todo mundo era feliz.
Pouco depois, em 1973, a medicina também passou a se desenvolver entre muros ao mudar as linhas divisórias sobre o que era normal e o que era doença mental. O diagnóstico passou detectar fragmentos de sintomas, e cada qual é desligado do que une todos eles.
Esses muros ignoram os processos políticos e históricos, por exemplo, que levam ao sofrimento. Para compreendê-los, é preciso retomar a ideia de mal-estar em Freud. Para a psicanálise, existe o mal-estar porque estamos todos amarrados uns nos outros e não podemos “cair do mundo”. Fazemos parte do “estar” no mundo. Temos um pacto com quem veio antes e com quem virá depois. Esse pacto estará sempre mal-resolvido, pois temos pactos com quem veio antes e com quem virá depois. “É como um trem: ele já está andando. Já está organizado ou desorganizado.”
Sofremos, portanto, porque sabemos que a história termina mal. Nosso corpo não é infinito. A vida tem de contingências. A natureza não está a nosso favor. Diante do caos inevitável, inventamos pactos, leis e formas de vida para remediar o mal-estar. Estes pactos criam um mal-estar ainda maior. Como resolvê-lo?, questionou o psicanalista.
Segundo ele, a negação do mal-estar não é a ideia neoliberal de “bem estar”. É estar. O condomínio, afirma, não é só uma ideia orientadora do desejo. É a realização de um ideal. E isso é problemático.
Para o psicanalista, a lógica da ordem econômica nos leva a confundir sonhos com projetos e desejos com objetivos. “Há algo faltante em nossas ideias que as tornam ideias. No Brasil, o condomínio tem a ver com evasão, uma saída de algo que não toleramos. E é formado por muro de defesa.”
O muro do condomínio, afirmou, é uma construção simbólica. É uma estrutura que diz “não, daqui você não vai passar; daqui pra lá, você é perigoso”. O raciocínio é: “Eu só posso estar seguro entre iguais”. E esse critério de ‘iguais’ é o critério de poder pagar por aquela vida. “A graça de viver no condomínio é a ideia de que quem está por fora quer entrar. É o gozo adicional da inveja.”
Dunker lembrou que, nos anos 1970, tínhamos uma forma de relacionar o poder e a autoridade: “você sabe com quem está falando?”. Era uma forma de dizer que não somos todos iguais diante da lei. Esta só valia aos inimigos.
Hoje existe um outro jeito de se conduzir diante da lei. Basta dizer: “eu só cumpro regras”. A figura que diz “eu só cumpro regras”, segundo Dunker, é o síndico. O síndico, afirmou, é uma estrutura de autoridade. E ocupa a posição do gestor na educação, na saúde, na cultura, na economia.
“É o vendedor que vende qualquer coisa. Ele entende do processo, mas não das atividades-fim. O gestor sabe que o que faz será ruim. Mas em nome do projeto ele vai lá e faz. É a inconsequência calculada.”
Para Dunker, quando a pessoa muda para o condomínio, tudo parece em ordem, mas há “o cheiro do ralo”, como no filme de Heitor Dhalia, a dizer o contrário. A consequência é uma hipertrofia de regulamentos. É quando o síndico cria leis dentro das leis. Resultado: este sujeito que busca a liberdade no condomínio se descobre em uma prisão. Ele está condenado a viver entre iguais. “E, entre iguais, as pequenas diferenças se ampliam violentamente. É quando surgem as conversas e as curiosidades entre vizinhos. É o narcisismo das pequenas diferenças de que fala Freud.”
Esses pequenos problemas, segundo o palestrante, tornam a vida intolerável. E nos fazem sofrer ainda mais. “Uma pessoa que tem de chegar na hora no trabalho e atrasa sente que cometeu um grave delito. A pessoa vive aquilo por uma coerção. O sintoma é uma ideia que nasceu com a gente e precisa ser expulsa porque a consideramos intolerável.”
“O Brasil é feito a partir da gramática do que reconhecemos como sofrimento legítimo ou não. E a narrativa do sofrimento tem a ver com a narrativa do objeto intrusivo. A ‘cura’ é tirar o objeto dali. O objeto intrusivo é sempre o álcool, e não a violência do sujeito.”
Outra narrativa do sofrimento citado por ele é a ampliação de regras e regulamentos para deter qualquer objeto intrusivo – no caso, alguém que não cumpre as regras. O filme Tropa de Elite diz: precisamos de alguém que transgrida a lei para reformar a lei. Tendemos a imaginar a violência como uma transgressão das leis. Mas não vemos a violência de quem faz a lei
Outra narrativa do sofrimento, por fim, é criação de muros porque não somos capazes de lidar com as diferenças.
“A alienação da alma e dissolução do eu são também narrativas de sofrimento. Mas essas costumamos não observar. O que nos falta é olhar para o mundo.”
mal-estar, sofrimento e sintoma com christian dunker from cpfl cultura on Vimeo.