a legião estrangeira de clarice lispector e o efeito do estranhamento, com noemi jaffe (íntegra)
“Clarice ajudou muitas mulheres a se assumirem como mulheres não satisfeitas”
Segundo a escritora Noemi Jaffe, convidada do Café Filosófico CPFL de sexta-feira, 17/04, a autora de A Legião Estrangeira tinha a capacidade de ver as coisas como uma criança. “Era como se as visse pela primeira vez e fizesse com que os leitores reconquistassem um olhar inaugural”
O estranhamento é um aspecto fundamental na obra de Clarice Lispector. Assim como seus livros, ela era considerada uma pessoa “estranha” pelos grupos com os quais convivia. “Quando lemos Clarice, amamos ou odiamos, mas a obra dela também é considerada estranha. O estranhamento não só repele”, disse a escritora Noemi Jaffe durante o Café Filosófico CPFL de 17/04/15 sobre “A legião estrangeira de Clarice Lispector e o efeito do estranhamento” (vídeo abaixo).
O estranho, explicou a palestrante, é o “de fora’, o que não pertence a determinada comunidade. “Ninguém é estranho em si, mas em relação a”. Certa vez, contou Noemi, perguntaram a Clarice por que ela não escrevia uma história normal. Ela tentou: “Era uma vez um pássaro. Meu Deus”.
Segundo a escritora, Clarice tinha, em sua obra, a capacidade de ver as coisas como uma criança. Era como se as visse pela primeira vez e fizesse com que os leitores reconquistassem um olhar inaugural: “O que é essa palavra que sempre digo mas nunca disse?”
Esse olhar do estrangeiro, disse a especialista, é também o olhar do espanto. “Platão falava da filosofia como a origem do espanto: ‘o que é a vida?’; ‘para que existe a morte?’; ‘qual a origem do mundo?’ Crianças e poetas fazem essas perguntas. Com o tempo, a gente para de se espantar com a realidade. Até ler Clarice.”
Noemi citou a capacidade de maravilhamento de Clarice em relação a uma simples barata, um inseto considerado repugnante pela maioria das pessoas. Da mesma forma, o ovo, para a autora de “A Legião Estrangeira”, pode ser uma coisa espantosa. “Como é possível que exista um ovo?”, perguntava a escritora.
Ao ver o ovo, a personagem de Clarice no conto “O Ovo e a Galinha” experimenta uma “epifania”, ou seja, uma “revelação”. “A literatura, depois de Joyce, concebe essa ideia como uma revelação cotidiana. Os personagens de ‘A Legião Estrangeira’ são uma legião de estrangeiros. Como as crianças.”
A palestrante lembrou que é comum aos adultos censurarem as crianças dizendo que elas só vão poder pertencer ou participar de algo quando crescerem. O mesmo com os velhos. No livro, “outros que a gente não quer ver (crianças, velhos, loucos, animais) nos são apresentados a partir da visão deles”. “Esses são os personagens de Clarice. A maioria deles não tem nome. É como se cada um fossem todos os personagens.”
As histórias do livro, lembrou, não têm trama. Geralmente resumem-se a enredos banais. Não tem ação, aventura ou enredo. “A esperança, para Clarice, é uma espécie de perdição. Para ela, matar baratas é como um assassinato. As ações nos contos têm o efeito de gratuidade: as pessoas fazem as coisas por fazer. Sem razão explicável.”
Em sua obra, Clarice ensina que, para ver as coisas, é preciso que elas morram. Morrer, mostrava a autora, é um processo ininterrupto. “Quando você ‘desolha’ a coisa é que você a vê. Vida nascendo é tão sangrento quanto nascer. Ver a vida, para ela, embrulhava o estômago”, disse.
Durante o encontro, a palestrante criticou a tentativa de, a partir de frases aforísticas e bíblicas com sentido independente, associar o texto de Clarice em frases-feitas. O efeito, disse, dá a falsa impressão de que Clarice era uma autora “fofa” – algo distante da realidade. “Clarice detestava fofura. Na sua última entrevista, é possível ver o quanto ela não era nada ‘fofa’.”
Noemi classificou a internet como um lugar de reprodução, um terreno fértil a essa repetição descaracterizada e simplista dos autores. “Os bons autores estão o todo tempo trabalhando com a ideia de estranhamento. Eles têm um jeito único e estrangeiro de escrever.”
Clarice, no entanto, tem suas peculiaridades. É uma autora emotiva, algo possível de sentir em suas cartas e crônicas. Ao mesmo tempo ela mostrava o lado obscuro das coisas. “A literatura dela não é fácil nem gostosa. É difícil e exige uma disposição para suportar o obscuro. Para ela, nascer é difícil.”
Para a especialista, embora fosse uma dona de casa, Clarice pode ser considerada uma escritora feminista e à frente do tempo. “Ela escrevia enquanto cuidava da casa. Ainda assim, ajudou muitas mulheres a se assumirem como mulheres não satisfeitas por serem mães e esposas. Ela ajuda outras mulheres a terem epifanias em relação à vida. Algo muda dentro delas. Em sua obra, os homens não são numerosos nem importantes.”
Outro aspecto interessante na autora, disse Noemi, é que ela se dizia uma anti-intelectual. “Ela dizia ler pouca literatura e pouca filosofia. E queria ser entendida como uma mulher comum. É possível que Clarice jamais tenha lido Nietzsche.”
a legião estrangeira de clarice lispector e o efeito do estranhamento, com noemi jaffe from cpfl cultura on Vimeo.