um panorama da medicalização na infância, com rossano cabral lima (íntegra)
“diagnóstico de tdah expõe as nossas exigências sobre o desempenho das crianças”
para o psicanalista rossano cabral filho, o diagnóstico contra hiperatividade serve como um “índice de adequação” para jovens inquietos, impulsivos – e saudáveis
o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (tdah) é o carro-chefe do fenômeno da ampliação dos diagnósticos de transtornos mentais na atualidade, afirmou o psicanalista infanto-juvenil rossano cabral lima, professor-adjunto do instituto de medicina da universidade estadual do rio de janeiro, durante o segundo programa café filosófico cpfl sobre “medicalização fora de controle”.
com o tema “um panorama da medicalização da infância”, cabral lima abordou os impactos e consequências dos diagnósticos cada vez mais comuns, sobre as crianças e suas famílias. “o tdah deixa explícitas as nossas exigências em relação ao desempenho escolar das crianças. é um índice de adequação”, definiu.
segundo o palestrante, isso não significa que o diagnóstico não possa ser útil. “o problema é que o diagnóstico está feito de forma apressada. em geral, não se leva em conta os fatores sociais e culturais que levam as crianças a ficarem inquietas ou impulsivas.”
a banalização do diagnóstico, segundo cabral lima, atinge também outros tipos de transtornos, hoje mais comuns do que em outros tempos. como exemplo, ele citou o fato de que uma em cada 80 crianças americanas terem o diagnóstico de autismo. “no passado, a prevalência era de 0,04%. houve uma ampliação do conceito”. e completou: “hoje, basta ter um traço autista para ser diagnosticado como autista”.
cabral lima questionou se o problema não estaria nos adultos, que inventaram um modo de diagnosticar as crianças. segundo ele, a banalização do diagnóstico pode ser explicada em razão da necessidade de dar “nome” para explicar por que os nossos filhos são impulsivos, briguentos e irritados. “por que transformamos irritabilidade, dificuldade de atenção ou problemas de desobediência das crianças em transtornos?” e prosseguiu: “não podemos pensar que tudo o que não vai bem com uma criança corresponde a um quadro médico que merece ser classificado”.
cabral lima contestou a ideia de que as crianças de hoje têm menos “limites” do que em épocas anteriores. “por que a criança que não presta atenção em uma aula pouco interessante consegue ficar duas horas na frente do videogame?”, provocou. “me recuso a pensar que só temos duas soluções para crianças inquietas: ou a palmatória das escolas ou medicamentos como a ritalina.”
segundo ele, estudos mostram que o uso desse tipo de medicamento é benéfico a curto prazo, mas tende a perder o efeito com o tempo. “existem outras estratégias, além da medicação, mais interessantes a médio e longo prazo.”
para cabral lima, é possível relacionar o aumento do consumo desse tipo de medicamento como resultado do distanciamento dos pais em relação aos filhos. nesse sentido, é mais fácil controlar as inquietações das crianças por meio de medicamentos do que tentar entender o contexto e as origens dessas manifestações.
esse contexto é importante para compreender o comportamento desses jovens, daí a crítica às naturalização dos transtornos. “a neurotecnologia faz a gente acreditar que se pode visualizar a depressão e o tdah no cérebro. mas as pessoas têm transtorno porque simplesmente têm”, afirmou.
gravado em 15 de agosto de 2014.
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rossano cabral lima, psiquiatra infanto-juvenil e professor adjunto do instituto de medicina social da uerj
a proliferação de novos diagnósticos na psiquiatria infantil e juvenil deve ser alvo de investigação crítica, a partir de suas origens nos séculos xix e xx. é preciso evitar que categorias diagnósticas sejam tomadas como resultado natural do avanço do saber médico, lançando mão do conhecimento oriundo da área das ciências humanas e saúde para apontar os fatores científicos, sociais, ideológicos que sustentam esse fenômeno e avaliar seu impacto na clínica, nas políticas públicas, na escola e na família.
rossano cabral lima é psiquiatra infanto-juvenil. professor adjunto do instituto de medicina social da uerj. doutor em saúde coletiva pelo instituto de medicina social da universidade do estado do rio de janeiro, com doutorado sanduíche no instituto max planck de história da ciência (berlim, alemanha). é autor do livro: “somos todos desatentos? o tda/h e a construção de bioidentidades”, publicado pela relume-dumara, em 2005.