Relato de um encontro com Zygmunt Bauman | por Mário Mazzilli
Relato de um encontro com Zygmunt Bauman
Por Mário Mazzilli
Sociólogo, diretor do Instituto CPFL
Zygmunt Bauman, um dos mais influentes e populares pensadores globais dos últimos 30 ou 40 anos, é também uma das principais referências teóricas do Café Filosófico CPFL, programa criado em 2003 pela CPFL Energia e apresentado semanalmente pela TV Cultura de São Paulo e suas afiliadas. Sua morte nos priva de um dos mais atentos observadores da sociedade contemporânea, acostumado a iluminar aspectos mal percebidos da realidade, tragados pela voragem dos fatos e pela instantaneidade da cobertura da mídia. Além disso, essa perda impacta pessoalmente a todos nós do Café Filosófico, que tivemos o privilégio de partilhar, ainda que brevemente, de sua companhia.
Desde o nosso início, alimentávamos o sonho de contar com Bauman no Café Filosófico. Entendemos, com ele, que as identidades tradicionais se dissolveram na efemeridade afetiva da modernidade e que a reinvenção dos laços humanos é uma tarefa urgente. Orientados pela sua refinada visão sobre a fluidez das relações humanas, dos conceitos e dos saberes na contemporaneidade, definimos que o Café Filosófico assumiria o desafio de pensar as novas identidades e as novas formas de saber. Foi, portanto, com muita alegria que imediatamente nos associamos ao seminário Fronteiras do Pensamento, quando seu curador, Fernando Schüler, nos informou que Bauman tinha aceito o convite de realizar conferências no Brasil. Era o início de 2011.
Infelizmente, o entusiasmo logo foi substituído pela frustração. Bauman tinha desistido de fazer a longa viagem de Leeds, cidade industrial do norte da Inglaterra onde morava desde a década de 1960, a Porto Alegre, São Paulo e Campinas, a sede do programa. Dizia estar já velho e cansado para viagens fora da Europa. De fato, sua agenda continuava intensa, mas previa palestras em universidades e encontros com a imprensa apenas na Europa.
Mas, graças à dedicação do Fronteiras e à ética pessoal de Bauman, solidamente enraizada na tradição humanista europeia e não na fluidez de nossos tempos líquidos, achamos uma solução. Bauman aceitou nos receber em Leeds, onde poderíamos gravar o tão desejado Café Filosófico e registrar um depoimento especial para o público do Fronteiras.
Previsto para durar 60 minutos, o encontro se alongou por cerca de três horas. Bauman revelou-se uma pessoa de extrema simpatia e cordialidade com a equipe que virtualmente “invadiu” sua casa naquela tarde de verão inglês com câmeras de cinema, gravadores de som e equipamentos de iluminação.
A entrevista foi gravada na sala de leitura da casa que fica em uma pequena rua sem saída. Bauman nos recebeu em um ambiente familiar despojado, marcado por imagens de sua mulher, Janina, falecida há pouco, de suas três filhas, de seus netos e de muitos livros em variados idiomas. Foi uma longa conversa que tratou de expectativas para o século 21, relacionamentos virtuais, amor, felicidade, a construção de uma nova definição de democracia.
Assista à entrevista de Bauman:
Apesar da densidade com que os temas foram tratados, Bauman usou uma linguagem direta, acessível e bem-humorada. Sobre amizade e Facebook, por exemplo, disse: “Um viciado do Facebook faz 500 amigos em um só dia. Em toda a vida eu jamais seria capaz de fazer 500 amigos. Quando ele diz amigo e eu digo amigo, não queremos dizer a mesma coisa”. No tema da globalização e das relações humanas: “Todos nós dependemos uns dos outros. O que acontece na Malásia, quer você saiba ou não, sinta ou não, tem tremenda importância nas perspectivas de vida dos jovens em São Paulo. Essa é a primeira vez na história em que o mundo é realmente um único país”. Sobre a permanente questão da segurança e da liberdade: “Há dois valores essenciais e indispensáveis para uma vida satisfatória: segurança e liberdade. Segurança sem liberdade é escravidão. Liberdade sem segurança é um completo caos. O problema é que ninguém na história encontrou a fórmula dourada entre segurança e liberdade”.
O bom humor marcou especialmente os últimos momentos da visita. Quando nos acompanhou à saída, Bauman, com evidente ironia, fez questão que admirássemos o seu “típico jardim inglês”, um pequeno espaço onde uma mesa de madeira e quatro cadeiras estavam praticamente encobertas pelo mato sem o cuidado adequado havia muito tempo. Na hora do adeus, a surpresa maior. Ele, reconhecidamente um crítico do consumismo exagerado de nossa sociedade, nos recomendou: “Não deixem de passar pelo centro antes de embarcar para Londres. Todas as lojas estão em liquidação. Aproveitem!”.
Via ZH.