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madame bovary de flaubert e as tiranias da intimidade, com margareth rago (íntegra)

Madame Bovary e as novas formas de confinamento

No Café Filosófico CPFL sobre a obra de Flaubert, historiadora Margareth Rago fala das mudanças do papel das mulheres na sociedade contemporânea

Emma Bovary queria uma vida que fizesse sentido. Não estava sozinha: na segunda metade do século XIX, os homens também se entediavam com a vida regrada da sociedade burguesa, mas podiam sair, viajar e estudar. Por isso a questão de gênero é fundamental na obra, defendeu a historiadora da Unicamp Margareth Rago durante o Café Filosófico CPFL sobre “Madame Bovary de Flaubert e as tiranias da intimidade” (assista ao video abaixo). “Os homens tinham saídas. As mulheres eram mortas pelo adultério. Os homens não eram presos quando matavam as mulheres. Diziam cometer os crimes em nome da honra”, lembrou.

A desigualdade de relações, explica a professora, era referenda pelo saber médico da época. “A ciência dizia que o cérebro da mulher era menor, que ela tinha corpos para ter filhos e não para andar em público. A ginecologia dizia: quem não exercia a essência da maternidade tinha distúrbios, eram monstros.”

Segundo Rago, a figura da “rainha do lar”, que a burguesia defendia dentro do modelo de família nuclear, foi criada nessa época. As mudanças dessas ideias só viriam, anos depois, com o fortalecimento do movimento feminista. “Os estudos históricos do casamento, do discurso médico, de artistas e escritoras se ampliaram com o feminismo. Até 1970 as mulheres não tinham passado. Passaram a ter história com o movimento feminista”, disse.

A história de Madame Bovary é construída neste contexto. Embora fosse amigo de uma grande intelectual feminista, George Sand, Flaubert não era um feminista, mas um crítico da sociedade burguesa, lembrou Rago. “Ele não confinava as mulheres ao lar.”

Para abordar a ideia do confinamento, Rago buscou em Richard Sennett, que aborda o declínio do homem público, a expressão “tirania da intimidade”. “As mulheres não tinham acesso à cidade, não participavam da política e não podiam ir ao restaurante sozinhas. A medicina, que referendava essa ideia, havia dessexualizado as mulheres. As prostitutas eram chamadas de mulheres públicas, e o espaço delas era um espaço masculino. Hoje mulheres públicas são as autoridades, como a presidenta.”

Nos dias atuais, lembrou a autora de “Do Cabaré ao Lar”, o mundo se transforma em alta velocidade, e a consequência é a perda da ideia de tempo e o tempo para reflexão. “A sociedade não dá tempo para a elaboração da experiência, esse processo necessário para se compreender. Essa sociedade que não dá esse espaço para a construção da subjetividade dá lugar a pessoas deprimidas.”

As mulheres, afirmou a palestrante, se emanciparam, mas a violência masculina ainda é comum. Mesmo assim, disse, é preciso reconhecer que os homens mudaram. “Um homem de 30 pensa diferente de quem foi educado antes.”

Segundo ela, a sociedade hoje já não confina as mulheres ao lar, mas a papéis e identidades. “O mundo hoje diz que você precisa render o tempo todo e ser flexível. Esse discurso é um aprisionamento.”

Assustados com as mudanças, os indivíduos buscam proteção em uma ideia de normatividade, o que explica a ascensão de grupos de jovens conservadores no debate público. “Décadas atrás, educar os jovens era discipliná-los. Torná-los quietos e obedientes. Mas, na busca pela normatização, pelo corpo perfeito, eu me perco de mim. O resultado é a depressão.”

Nesse sentido, ela disse ver com otimismo as lutas pela ressignificação dos papeis de minorias. “Hoje vejo os jovens nessa busca de si. Muitos não querem carro. Querem uma vida saudável”, disse. “Vejo a Marcha das Vadias de maneira muito positiva. O feminismo tinha uma carga muito pesada até recentemente. O feminismo percebeu que não lutava para ser homem. A marcha das vadias cutuca a questão da moral.”

Rago disse não saber quem seria a Madame Bovary hoje em dia, mas arriscou: “elas não estão dentro de casa.”

madame bovary de flaubert e as tiranias da intimidade, com margareth rago (íntegra) from cpfl cultura on Vimeo.