fiódor dostoiévski: crimes sem castigo e uma genealogia da banalidade do mal, com flávio ricardo vassoler, crítico literário
- instituto cpfl
- 19:00
café filosófico
04/05| sex | 19h
fiódor dostoiévski: crimes sem castigo e uma genealogia da banalidade do mal
com flávio ricardo vassoler
Em seu romance Crime e castigo (1866), Dostoiévski faz com o que o jovem intelectual Ródion Raskólnikov leve às últimas consequências a morte histórica de Deus: se Deus não existe, tudo é permitido. Logo, Raskólnikov compreende que a modernidade capitalista, relativista e crescentemente individualista revoga o Não matarás e lhe abre o ímpeto de instrumentalização do outro – uma das facetas da banalidade do mal – como um verdadeiro teste niilista: seria Raskólnikov capaz de cometer um assassinato para afirmar o poderio de seu ego e ocupar o trono vago de Deus?
Vale frisar que, em Crime e castigo, Raskólnikov concebe e executa os assassinatos – o planejamento inicial só envolvia a morte da usurária Alióna Ivánovna, mas, no momento do crime, a irmã da vítima aparece inusitadamente, e o jovem niilista se vê compelido a violar a fronteira do Não matarás uma vez mais (e sempre).
Ao pensarmos sobre os refinados mecanismos de burocratização e alienação que vão apartando a concepção dos crimes de sua execução desde a época de Raskólnikov até a contemporaneidade, lembramo-nos do exemplo paradigmático do oficial da SS nazista Adolf Eichmann (1906-1962), responsável pela logística de transporte dos judeus dos guetos para os campos de concentração no Leste Europeu: Eichmann jamais se disse responsável pelo holocausto.
Como funcionário zeloso, o burocrata apenas cumpria ordens de modo eficiente – ele se via como um parafuso em meio a uma engrenagem altamente complexa, cuja totalidade, a bem dizer, lhe escapava. Eichmann bem podia saber o que acontecia ao fim do processo, mas, como sua atividade imediata não envolvia a morte de quaisquer seres humanos – Eichmann só lidava com planilhas e relatórios –, o funcionário chegou a afirmar, em meio a seu julgamento em Jerusalém, no início da década de 1960, que sequer antissemita era.
Representante arquetípico do processo de alienação social (e ética) que aparta (e exime) o crime da culpa, Eichmann pode ser tido como um descendente mais moderno de Raskólnikov, já que o burocrata nazista jamais precisou ouvir o choro e o ranger de dentes de suas vítimas que, na verdade, pareciam ceifadas por um mecanismo impessoal
que ele não vislumbrava e não compreendia como um todo. Ao pensarmos sobre os atuais ataques militares com drones, a alienação ética parece levada às últimas consequências: não há qualquer pathos envolvido em ataques comandados via satélite, ataques dos quais ninguém pode sobreviver. (Alióna Ivánovna e sua irmã talvez
pudessem ter escapado das machadadas de Raskólnikov – eis o fator humano da suma desumanidade da personagem dostoievskiana –, mas ninguém escapa do morticínio computadorizado.)
É assim que, com o ápice da letalidade impessoal, entreveremos, a partir de Dostoiévski, uma possibilidade de genealogia para a banalidade do mal que nos leve de Crime e castigo à atualidade dos crimes sem culpa e quaisquer castigos.