Entrevista com Murilo Salles, diretor de Nome Próprio
por Fernanda Bellei
Um diretor atento ao mundo contemporâneo. Assim podemos definir Murilo Salles, carioca que respira cinema desde criança. Após dirigir filmes como Nunca fomos tão felizes (1984), Faca de dois gumes (1988) e Como nascem os anjos (1990), ele mergulha em um universo em expansão para escrever e dirigir Nome Próprio: jovens que descobriram nos blogs um meio de expressão.
O filme conta a história de Camila (Leandra Leal) uma jovem mulher que dedica a vida à sua paixão, escrever. Sua vida é sua narrativa. O filme é uma livre adaptação cinematográfica dos livros "Máquina de Pinball" e “Vida de Gato” de Clarah Averbuck e de seus textos publicados na Internet, no site e no seu blog pessoal. Clarah é hoje um jovem talento que migrou do boom de “blogs” da internet brasileira para a literatura. Aos 27 anos já tem três livros publicados.
Qual foi seu primeiro contato profissional com o cinema? O que te fez decidir a trabalhar com a sétima arte?
Eu faço cinema desde que eu me entendo por gente. Interessei-me por cinema aos 14 anos e comecei a fazer aos 17, hoje tenho 57. Minha vida é totalmente dedicado ao cinema, esta é a minha verdadeira paixão, é por isso que eu me identifico tanto com a Camila, personagem do filme Nome Próprio, pois ela também é apaixonada pelo o que faz. Comecei no Rio de Janeiro, final dos anos 60… Aquele era um momento muito especial, pois estava surgindo o cinema novo e cineastas como Glauber Rocha, Nelson Pereira Santos, Joaquim Pedro de Andrade estavam no Rio. Nesta época, o Jornal do Brasil resolveu fazer um festival de cinema amador e todos os garotos do Rio de Janeiro que queriam fazer cinema iam para lá. Participei de duas etapas: na primeira consegui uma menção honrosa e na segunda eu ganhei o festival, com o documentário “ABC Montessoriano”, sobre o método Montessori de educação, já que a premissa do festival era abordar temas didáticos.
Qual é seu método de criação?
Meu método é meio caótico, eu transpiro cinema 24 horas… Às vezes eu sonho com o filme. Por exemplo, se tudo der certo vou começar a fazer um filme em julho do ano que vem, e este é um filme com o qual eu sonhei! Além disso, tem as coisas que eu penso, que eu vejo na rua, que eu leio… Não é ciência, não tem uma equação para enfrentar. Só tem um período parecido com isso: é a criação do roteiro, mas quando você começa a escrever o roteiro você já meio que decidiu o filme que você quer. Ninguém começa um roteiro sem saber o que vai fazer, até um romancista toma notas e faz pesquisas antes de redigir. Cinema é uma coisa muito cara, você não pode se dar ao luxo de improvisar tudo. No set ficam 100 pessoas olhando para você, perguntando: o que é que eu faço agora? Na hora de começar a filmar tudo tem que estar pronto, você tem que saber qual é o fotógrafo indicado para aquele filme, o ator tem que vir preparado… Não há tempo para ensaio.
O diretor britânico Peter Greenaway, em uma entrevista à revista Bravo! diz que o cinema nunca existiu e que o que vimos até hoje foram “textos ilustrados”. Em seu texto “Que filme estamos fazendo hoje?” você também diz que quer definir uma estética, uma ética cinematográfica, e que seu cinema tem mais imagens e menos narração. Você também acha que o cinema ainda se prende muito à narrativa?
Pois é, acho que isso é um pouco de mistificação do Peter Greenaway. Os cineastas ficam procurando motes para tirar onda e ficar famoso. Eu também tenho um mote pra tirar onda! O meu mote é tirar onda sobre a ética do cinema. O cinema é o que eu chamo de liturgia. Uma vez me perguntaram como se define cinema… Isso é complicado, mas o ato mais próximo do que eu chamo de cinema é o momento da comunhão católica, tem aquele padre dizendo coisas que você não entende muito bem, naquela igreja gelada, o órgão tocando… Aquilo é uma imagem! É exercício de atuação, tem simbologia, atores, gestual… Tem tudo o que eu acho que compõe o cinema: algo fora da palavra. Nesse sentido eu concordo com o Greenaway! Porque você acha que os filmes americanos de ação fazem tanto sucesso? É porque eles são pura imagem. Mas em certo ponto aquilo vira uma escola de samba, é muito cheio de fogos e efeitos especiais… Tornou-se lugar comum. O cinema precisa da imagem para chamar o público, pois quem quer ver simplesmente uma historinha falada por atores pode ficar em casa e ver novelas da Globo.
Sobre o filme Nome Próprio, o que te motivou a abordar o universo dos bloguers?
Acho que sempre existiu um “lugar” existencial do terceiro mundo, o lugar da barbárie, do dinheiro sujo, do roubo, da prostituição, do escravagismo, onde o colonizador pega o ouro e o açúcar e leva para Portugal… Isso foi evoluindo em um processo civilizatório e eles (os colonizadores), agora de uma forma sofisticada, continuam ditando qual é o nosso lugar no mundo. Existe um lugar filosófico para o cinema brasileiro: o que eles querem ver da gente? É a miséria, a violência, ou então o folclore, o exotismo… É esse o lugar que eles nos oferecem. Se você faz um filme no estilo do Bergman, de drama existencial, eles perguntam: ‘Quem é esse cara? Quem ele pensa que é?’ De uns tempos pra cá, eu tenho ficado chateado com isso porque acho que a gente está produzindo uma sociedade genial e complexa. O brasileiro é muito mais complexo existencialmente que um europeu! Nós somos uma mistura de mil influências! Eu me recuso… Então pensei: o que eu poderia escolher para abordar sobre a sociedade brasileira que não fosse a barbárie? A internet. Tudo começou com esse recorte, pois eu queria sair desse lugar. Além disso, este filme fala sobre a mulher e seu papel na sociedade atual.
E como você chegou até a Clarah Averbuck (inspiração para o filme)?
Isso foi um pouco de acaso. Estava lendo uma coluna sobre internet, em 2002, e vi que tinha um blog pessoal brasileiro que já era o oitavo mais visitado no mundo e era justamente dessa gaúcha, a Clarah Averbuck, que estava escrevendo o livro Máquina de Pinball. Mandei um email para a Clarah, nós nos encontramos e eu comprei os direitos do livro dela. Logo chamei a Elena Soares, que é uma roteirista maravilhosa, para fez o primeiro tratamento do livro, pois eu estava produzindo outro filme. A Clarah é filha de uma mulher que participou da liberação sexual das mulheres, desta luta para que elas conseguissem seu espaço na sociedade… Isso tudo eu fui aprendendo com a Clarah, pois o filme fala sobre a riqueza deste excesso de feminilidade.
Sobre o filme, Clarah escreveu em seu blog: “nada daquilo aconteceu. Eu não tirei meu livro de blog algum, eu não ‘queria’ escrever um livro obsessivamente e nem fiquei me esforçando para isso. Simplesmente aconteceu, cheguei em São Paulo, abri um documento de Word e comecei. Eu ainda nem tinha blog naquela época, só fui fazer meses depois, quando o cardosonline acabou. Eu também não estou preocupada com mais ou menos acessos neste blog, eu simplesmente escrevo pra quem quiser ler e entender. Quem não entende nada eu passo, obrigada, vá ler outra coisa que lhe agrade....”. Esses fatos foram criados para trazer mais ação ao filme?
Pois é, mas eu acho que ela está mentindo! (risos). A Clarah é uma escritora e ela está fazendo uma luta política contra os blogueiros, que é uma nova entidade, um grupo de pessoas que ficam criando polêmica na internet só para ter acessos… Mas ela tem razão, pois ela faz uma operação literária no blog dela, ela é uma escritora, não uma blogueira…
Mas você acha que é possível, ou desejável, fazer um filme totalmente fiel a realidade? O diretor não precisa trazer elementos irreais para apimentar o filme?
Pois é, não existe nada totalmente fiel a realidade, mas meu filme tem muito a ver com ela, eu aprendi muitas coisas com a Clarah, mas eu fiz o meu filme! E essa não foi a primeira adaptação que eu fiz. Já adaptei João Gilberto Noll, Fernando Sabino e agora a Clarah… Então é um estupro mesmo! Por exemplo, o livro do Fernando Sabino, o Faca de dois gumes, foi muito mais radicalmente estuprado do que o que eu fiz com o dela! O livro do Noll, também, eu mudei pra caramba, fiz uma outra coisa! Com a Clarah eu trabalhei com esta questão do alter-ego, sobre o que é real e o que não é real. No fim, o filme se revela uma obra sobre construção de narrativa.
O que os autores acham dessas adaptações? A Clarah aprovou o resultado do filme?
A Clarah ficou um pouco chateada porque eu alterei muito os textos dela na tela. Mas não teve jeito, porque os textos dela são de romance, são frases extensas… Na medida que estou fazendo um filme sobre literatura e eu quis mostrar a literatura na tela, eu precisei de uma poetisa para sintetizar isso e chamei a Viviane Mosé, foi ela que fez esse trabalho comigo. E aí a Clarah se morde de ciúmes da Viviane, óbvio! (risos).
Agora uma sobre o cinema brasileiro… Podemos dizer que os filmes nacionais têm uma estética própria? Como ele se difere dos demais?
Acho que a característica do cinema brasileiro é não ter características, ser híbrido como o país… Na verdade eu não sei… Quando eu era fotógrafo eu ficava procurando esta luz brasileira… O Luiz Carlos Barreto meio que inventou isso no filme Vidas Secas, essa imagem meio estourada, muito luminosa. Acho que nossas características de país tropical podem ser vistas nas luzes, nos contrastes, mas ao mesmo tempo podemos ver essas cores em um filme do Almodóvar! O mundo hoje é um hipertexto, não dá para separar as culturas.
Quais são seus novos projetos?
Estou começando a produzir dois documentários. Um é sobre a arte plástica contemporânea brasileira, que estou fazendo com o Paulo César Duarte, um grande crítico de arte do Rio. Ele está escrevendo um livro sobre o tema e meu documentário será parte deste produto. O outro documentário é o És tu Brasil 2, que será uma imersão no universo da cultura popular brasileira. Além disso, vou produzir um longa que se chama Os fins e os meios. É um filme sobre ética… Aborda a vida de um assessor político de um senador.