culpa e vergonha na atualidade, com julio verztman
“Sentimos vergonha por não parecer genuínos e bem-sucedidos o tempo todo”
No mundo atual, a vergonha está cada vez mais relacionada à imagem, e a como essa imagem se distancia da imagem dos outros, diz o psicanalista e psiquiatra Julio Vertzman no Café Filosófico CPFL
Em tempos de reality show e exposição pública de intimidade, o interesse em mostrar-se criou uma sociedade “extremamente exibicionista” e reforçou o aspecto negativo da vergonha, cada vez mais relacionada à autoimagem e menos a valores coletivos. O resultado é o surgimento de indivíduos angustiados por se sentirem permanentemente vigiados e por terem de se mostrar “genuínos” e “bem-sucedidos” o tempo todo.
A análise foi feita pelo psicanalista e psiquiatra Julio Verztman, professor da UFRJ, durante o Café Filosófico CPFL de sexta-feira 16 (assista a palestra na íntegra abaixo). O tema da palestra foi “Culpa e Vergonha na Atualidade”, parte da série “O Sofrimento Humano nos Tempos Atuais”, sob curadoria da psicanalista e professora da UFRJ Regina Herzog. “A pessoa envergonhada, a pessoa tímida que não consegue se expôr, é desvalorizada no mundo em que a gente vive”, afirmou Verztman em sua apresentação.
“Não sentimos vergonha quando rompemos com os ideais coletivos. Por conseguinte, a experiência da vergonha se dá em relação a aspectos da vida individualizados, e não coletivos. A pessoa tem vergonha se tem espinha na cara, se não tem uma performance melhor em público, se o outro tem uma camisa mais bonita que a dela. A vergonha está cada vez mais relacionada à imagem, e a como essa imagem se distancia da imagem dos outros.”
Em sua apresentação, Verztman listou exemplos de como a vergonha é vivenciada na atualidade. Usou como exemplo a sensação de “embaraço”. “É uma experiência atenuada da vergonha. A sensação de estar exposto. De estar se mostrando. Temos embaraço para nos proteger de sentir vergonha. Essa experiência de ‘sorria, você esta sendo filmado’ produz pessoas o tempo todo em estado de alerta, e angustiadas. Elas estão permanentemente embaraçadas porque sabem que o outro pode olhar para ela.”
Outra manifestação de vergonha é resultado do que o especialista chamou de “experiência de transparência psíquica”. “É a sensação de que nosso invólucro não dá conta de esconder nossa intimidade. De que somos transparentes e que o outro é capaz de nos ver, mas não como alguém com direito à intimidade.”
Ele analisou ainda a prática do bullying, classificada por ele como um fenômeno contemporâneo que provoca choques e desconforto diante do outro. “São experiências sofridas que devem ser ouvidas com atenção.” Ele alertou, no entanto, para os riscos de superutilização da expressão para qualquer contrariedade no universo social.
Para o psiquiatra, a culpa e a vergonha se manifestam em um contexto de declínio da submissão a figuras verticais de autoridades política, social e familiar. Segundo ele, as pessoas se culpam por não serem “herdeiras de tradições”, inclusive religiosas. “Passamos por uma modificação na relação do sujeito com a tradição. Quem ele representa? Quem ele continuará? Há uma dificuldade de se pensar a sua relação com o passado, e em que papel a sua vida ocupa dentro de uma linearidade.”
Essa dificuldade, afirmou, toca no campo da moralidade e da escolha de códigos morais conflitantes e heterogêneos. Nessa transição, diz Verztman, há um imperativo para o sujeito se apresentar sempre como portador de ideias genuínas e sem segredos em relação ao outro.
Na palestra, o professor da UFRJ usou exemplos de como a literatura tratou o tema ao longo da história e definiu a vergonha como a projeção no outro de algo que julgamos em nós e que deveria permanecer escondido. Segundo ele, sentimos vergonha de que essa revelação provoque o desprezo das pessoas.
“O sentimento de culpa é diferente”, alertou. Segundo ele, a culpa está relacionada aos nossos hábitos e manifesta-se quando um ato produz vítimas e sofrimento – e pelo qual se deve pagar. “É a sensação de que cometemos uma transgressão contra uma lei abstrata. Uma pessoa pode estar culpada sem que ninguém saiba. É uma experiência pessoal de avaliação moral”, definiu. “Vivemos em um universo em que a culpa se transmutou. Perdemos familiaridade com o aspecto desse sentimento. Como isso causa desamparo, acabamos projetando a culpa sempre no outro.”
O Café Filosófico CPFL é gravado às sextas-feiras, sempre com transmissão ao vivo, a partir das 19h. O programa vai ao ar aos domingos na TV Cultura, às 22h.
culpa e vergonha na atualidade, com julio verztman from instituto cpfl | cultura on Vimeo.
gravado em 16 de maio de 2014.