Confira entrevista exclusiva com José Alves de Freitas Neto, curador do Café Filosófico CPFL de março e abril
“Cada tempo tem suas armas para enfrentar os clássicos”
Em entrevista à CPFL Cultura, o historiador da Unicamp José Alves de Freitas Neto, curador da série “Os clássicos da literatura e o cotidiano” do Café Filosófico, fala sobre o papel dos cânones para a reflexão dos fragmentos e hiperconexões do mundo contemporâneo. Confira:
CPFL Cultura – É comum ouvir que a literatura perdeu a centralidade no universo da cultura. Vargas Llosa declarou recentemente que estamos ficando cada vez menos “cultos” e mais superespecialistas: somos capazes de colocar um avião no ar, mas para isso não precisamos (nem nos motivamos) a passar pelos dramas universais expostos nos clássicos da literatura. Qual a impressão do sr. a respeito?
José Alves de Freitas Neto – Não compartilho da mesma opinião de Vargas Llosa quanto à perda da centralidade da literatura no universo da cultura, pois é necessário pensar que a literatura sempre tem seu viés de incômodo, de questionamento e de expressão de realidades e densidades textuais, de produção de imaginários que habita um lugar subversivo, tanto pela linguagem quanto pelos temas que ela propõe. Supor que ela “perdeu a centralidade” implica afirmar que ela teve um lugar mais destacado em outros tempos que não temos no tempo atual. Há um saudosismo na opinião de Vargas Llosa e de muita gente que compartilha da mesma opinião. Mas se observarmos bem, sabemos que a literatura sempre foi um campo restrito. Temos de considerar os que escrevem e os que leem e, neste aspecto, a diminuição do analfabetismo contribui para a expansão do campo literário e seus múltiplos gêneros. O fato de produzirmos um olhar retrospectivo nos ajuda a encontrar grandes obras e grandes autores. Se comparado com um campo que continua a ser produzido, parece que estamos sempre num momento inferior. Mas penso que as questões humanas, por sua originalidade e universalidade, sempre demandarão novas interpretações e novos autores que nos inquietam. A literatura, por mais que se anuncie a sua crise, é dinâmica e continuará a ser constitutiva das referências culturais.
Concordo com a opinião de Vargas Llosa quanto à especialização que domina os tempos atuais, mas isso é fruto de outros aspectos e não é reponsabilidade de um fracasso do campo literário. E na década de 1970 e 1980 já havia essa mesma constatação. O que se ampliou hoje foi a dimensão dessa especialidade e sua velocidade.
CPFL Cultura – De que maneira este módulo de debates, um evento multimídia (com vídeo, transmissão ao vivo, exibição na tevê, presença em redes sociais), ajuda a colocar em primeiro plano o protagonismo dos clássicos em nosso cotidiano?
José Alves de Freitas Neto – Penso que a proposta do módulo tem um potencial para estimular o interesse pelos clássicos ao atingir um grande público em múltiplas plataformas, e permitir que as pessoas não se sintam intimidadas pelos clássicos, mas sim instigadas a lê-los ou relê-los. A sociedade brasileira, apesar de grandes esforços dos educadores, fracassa no estímulo à leitura de obras clássicas. Ficamos restritos a um código de obras imposto pelo modelo educacional e que ignora autores de outras línguas e países. Por este aspecto, mesmo que saibamos da importância de certos nomes, não avançamos na leitura. O ciclo proposto poderá aproximar o cotidiano e ampliar as justificativas para ler os clássicos.
CPFL Cultura – Em seu livro “O Cânone Ocidental”, o crítico literário Harold Bloom diz ser um erro interpretar o cânone literário como um programa de salvação universal. Para ele, a literatura clássica (universal, atemporal e original) se perde quando se coloca a serviço (ou sob o escrutínio) do engajamento de grupos com demandas específicas, como os movimentos sociais e de gênero. Como criar este diálogo sobre o que é universal em um mundo fragmentado como o atual?
José Alves de Freitas Neto – Devemos pensar que os cânones não são estabelecidos aleatoriamente: eles produzem uma imagem, traduzem uma percepção ou sentimento que os fazem permanecer dentro da cultura.
E tornam-se poderosos instrumentos de interpretação e, muitas vezes, adquirem uma força coercitiva sobre o leitor e as próprias sociedades. Nesse sentido, ele não é mesmo um programa de salvação universal. Mas também discordo de que as obras não possam ser lidas em outras perspectivas. A produção de um Cervantes, no conjunto de valores do mundo ibérica do início do século XVII, por exemplo, tem aspectos que aproximam e outros que são distantes de nosso olhar. Neste sentido, as obras são as mesmas, mas os leitores não são os do tempo de seu aparecimento ou das releituras posteriores. Cada tempo tem suas armas para enfrentar os clássicos. Caso contrário, seria um exercício catequético e dogmático que destruiria o próprio espírito da leitura literária. Claro que, nesse comentário, estou distinguido as leituras de um especialista, de um tradutor, pesquisador que precisa ter conhecimentos e rigores que não são os mesmos exigidos ou desejados para o público mais amplo. É para este segundo grupo que defendo a liberdade para aproximar-se das obras e ser seduzido pelo texto e pelas questões que as obras emanam. É o deleite de ser tomado pelas palavras e pela força que elas nos oferecem para decifrar parte de nossos enigmas.
CPFL Cultura – As editoras atualmente têm se esforçado para atender demandas cada vez mais específicas de leitores cada vez mais segmentados. Qual o destino dos clássicos (de hoje e do futuro) neste modelo de produção e demanda?
José Alves de Freiras Neto – Sobre a questão do mundo fragmentado, parece-me que é quase um senso comum: fragmentou-se de quem e em qual momento? A fragmentação potencializa ou destrói a condição humana? Mais uma vez, minha leitura diverge um pouco das lógicas catastróficas ou unitárias. A humanidade una é uma ideia útil a pensamentos fundamentalistas e autoritários. Se nos fragmentamos ou nos pulverizamos é porque temos a possibilidade de sermos múltiplos e não obrigatoriamente em contraponto com uma unidade metafísica, na qual repousaria a felicidade humana. A quantidade de obras literárias e filosóficas, desde o mundo antigo, que expressam dilemas de seres não-fragmentados e atordoados é sinal de que o problema não esteja na dicotomia universalidade/fragmentação, mas possa estar nas ênfases que damos a diferentes temas.
Sobre o mercado editorial: não tenho bola de cristal, mas se os clássicos já atravessaram períodos tão mais conturbados que os atuais, não me parece lógico supor seu desaparecimento. Ao contrário, sempre que enfrentamos crises graves, costumamos revisitar as fontes e procuramos compreender as origens de muitas indagações que pareciam adormecidas. Penso que os dois sistemas podem coexistir, pois não conheço nenhuma grande obra ou nenhuma pessoa sensata e erudita que despreze o lugar para os clássicos.
CPFL Cultura – Ainda segundo Bloom, cânones como Shakespeare, presente na proposta deste módulo, nos ajudam a aprender a suportar a nós mesmos, a falar a nós mesmos, e a fazer uma espécie de “uso correto da nossa solidão” – o que nos leva, de toda forma, ao confronto com a nossa mortalidade. Em um momento em que a ordem é “pertencer” e se comunicar o tempo todo, com smartphones, redes sociais, caixas de comentários em portais, iPhones, como podemos reaprender a lidar com nossa solidão e nosso silêncio?
José Alves de Freitas Neto – A vida em rede é um fenômeno que aparenta criar um aspecto coletivo e solidário em nossas existências. Mas basta acompanhar nossas próprias experiências para perceber o quanto nos saturamos e, ao mesmo tempo, o quanto permanecemos num ciclo superficial e instantâneo. A rede, felizmente, ainda não afasta nossa solidão e silêncio. Ao contrário, às vezes torna estridente nossa solidão e nossa dependência em relação ao outro. Há usos e usos para as redes e para as conexões. Nesse sentido, não quero generalizar, mas não ocorre na rede nenhum outro fenômeno que não experimentamos em nossas práticas sociais. Claro que ela permite aproximações, mas a dimensão e o espaço da aproximação são dados por mim. Isso permite ver outros pontos de vista, mas em geral as pessoas se agrupam para confirmar suas próprias e prévias opiniões. A rede, por mais extensa e heterogênea, não substitui a dependência em relação a outras pessoas e o contato físico. E já que falamos em solidão e morte, muitas vezes o tempo dispendido na rede nos dá a nítida sensação de que morremos um pouco ou desperdiçamos um pouco de vida no tempo em que estivemos conectados.
A capacidade de lidar com a solidão e o silêncio é um aprendizado do viver e ele pode ocorrer em espaços variados. Há pessoas que nunca se conectaram, não estão em rede, e nem por isso lidam melhor com sua solidão. Talvez a grande questão, voltando à origem do pensamento filosófico, seja a descoberta socrática de que mesmo sozinhos somos múltiplos: o homem é ele e, no mínimo, sua consciência. E este diálogo, muitas vezes tenso, aprendemos ao longo do tempo. Não há fórmula e, felizmente, a rede não operacionaliza isso por nós, pois seria a própria destruição do sentido de humanidade que carregamos conosco.
CPFL Cultura – De uns anos pra cá, aprendemos a reduzir nossos pensamentos em 140 caracteres. Compartilhamos ideias alheias, sem sempre atribuídas ao autor correspondente, com uma hashtags peculiar: #fato. Vemos também correntes de mensagens com manifestações de indignação seletiva, apressadas, com gritos em caixa alta (Capslock) e profusões de pontos de exclamação. Nesses diálogos, parece não haver espaço para a dúvida ou para subtextos. Isso é resultado de um país (ou uma geração) que ainda lê pouco? É possível dizer que as ansiedades dos tempos atuais nos afastaram dos clássicos? Ou as novas ferramentas de comunicação não são concorrentes com a necessidade de voltar aos clássicos para nos ler melhor, nos entender melhor, e nos tolerar?
José Alves de Freitas Neto – Não creio que as ansiedades atuais nos afastaram dos clássicos. Comunicar-se por 140 caracteres é um modo conciso e instantâneo, mas a demanda por diálogo e por apreensão de uma realidade mais ampla não se faz por hashtags. O que não deixa espaço para dúvida é semente para um pensamento autoritário e destruidor da condição humana. A humanidade é o que é porque pode pensar, tem o atributo e o dever de pensar. Ela pode até não querer pensar, mas nos impasses cotidianos ou nas questões gerais a reflexão se impõe. É claro que não estou descartando a existência de uma ação ou comportamentos como uma manada que reproduz qualquer argumento e toda superficialidade. Mas a coisa muda de figura quando há espaço para dialogar. Iniciar um diálogo é expor-se numa arena onde você pode reaprender, rever ou reafirmar seus valores. Por isso, penso que os clássicos continuam com sua força – eles não são leituras mágicas ou religiosas para aceitar uma interpretação prévia – são textos que nos desestabilizam e promovem um deslocamento para que eu saia de minha zona de conforto, das respostas prontas, e permita-me descobrir outros olhares e possibilidades, mesmo que não venha a concordar com elas. É um outro mundo que se desvela diante de mim.
CPFL Cultura – Para Bloom, “se não existe releitura, a obra não se qualifica”. Gostaria que o sr. falasse da importância da releitura das obras escolhidas no mundo contemporâneo. O que Madame Bovary, aprisionada ao tédio e à sombra do marido doutor, diz sobre mulheres emancipadas de hoje, inseridas no mercado de trabalho e engajadas em pautas como protagonismo, luta contra assedio, assimetrias, estereótipos etc? E Maquiavel, tema de sua palestra, o que nos diz sobre os dilemas políticos atuais?
José Alves de Freitas Neto – Um clássico não recebe esta adjetivação de forma gratuita. Ela se faz nas releituras e nas questões inéditas que emergem. As obras escolhidas seguem uma diretriz de grandes questões cotidianas que podem ser lidas na revisitação aos clássicos. Assim, não estamos à procura de receitas, mas de compreender como o diálogo entre nosso tempo e as referências da cultura ocidental pode ser encontrado. Da lógica de Cervantes, por exemplo, à nossa crise dos sonhos, do esgarçamento dos idealismos nos perguntamos sobre o que vemos. Quem somos numa narrativa daquela envergadura? No caso de Madame Bovary, a proposta é discutir o papel da mulher e as transgressões que ela pode fazer como leitora do mundo e da realidade que a cerca: ela se restitui e se constitui como protagonista e tem de decifrar tensões e não conformar-se com o modelo tedioso. Quantos não se debatem entre as escolhas deste modelo nos dias atuais?
Em minha fala sobre Maquiavel, interessa-me explorar “A Mandrágora”, texto teatral que contém todos os grandes temas da obra maquiaveliana, e perguntar sobre como distinguimos aspectos da moralidade e o papel duplo na relação entre vida pública e privada. É uma questão que está na ordem do dia: na política condenamos quase todas as práticas dos líderes e nas questões pessoais há uma zona cinzenta. Algumas questões emergem: qual o limite aceitável para burlar uma regra? Qual o princípio que norteia nossas ações e quais as distâncias entre o que aparentamos e o que praticamos? Este é o caminho que me leva a revisitar, sem moralismos, a lógica das aparências que identificamos em Maquiavel e como participamos desse mesmo sistema.
CPFL Cultura – Qual o paralelo possível entre Maquiavel e o Brasil atual, rachado e polarizado desde as últimas eleições? O Príncipe, por exemplo, fala sobre lideranças e a lideranças – e alerta para a necessidade do líder em se antecipar, pela análise histórica, a males e armadilhas contemporâneas a ele. Hoje se fala em crise de lideranças, e no noticiário a palavra crise é quase onipresente nas análises sobre política, economia, cultura. Na sua avaliação, o que nos falta neste momento: virtú ou fortuna?
José Alves de Freiras Neto – Talvez ambas as coisas. Mas o mais importante é considerar que há um fluxo que não conhecemos, um tempo que ninguém pode deter e, por isso, nada é tão previsível. Maquiavel adverte que a Fortuna é dona de até 50% de nossas ações. Interessa perceber que ela pode ser dona de ATÉ a metade de nossos atos, mas não sabemos o quanto podemos contar com ela. É um campo em aberto. Se Maquiavel fosse categórico e dissesse que ela é dona de 50% do resultado de nossas ações, nada poderia ser muito diferente e tudo seria aleatório. Mas com o “até” ele joga a responsabilidade sobre governantes e governados, pois eles têm de se desdobrar para serem merecedores da boa fortuna.
CPFL Cultura – O que Maquiavel e Hobbes nos dizem sobre a deposição de ditadores no Oriente Médio, a reboque da Primavera Árabe, e o protagonismo de lideranças regionais (e transterritoriais) como Angela Merkel e Vladimir Putin? É possível fazer algum paralelo a esse respeito?
José Alves de Fretas Neto – As obras são marcos do pensamento político clássico e nos oferecem pistas para interpretar os fenômenos políticos. O Príncipe e o Leviatã são obras bem diferentes em seus diagnósticos e suas soluções. Enquanto o primeiro aborda a origem do Estado moderno (seja republicano ou principado), o segundo é visto como uma chave do fortalecimento e do estabelecimento do poder indivisível do soberano. Um dos pontos que os aproxima é pensar não apenas o exercício do governante, mas também a natureza dos governados e os instrumentos que podem ser usados pelos detentores do poder em relação aos súditos. Dessa forma, sem me aprofundar – pois demandaria uma análise muito extensa –, quando os dirigentes não decifram as vontades dos governados (caso de Maquiavel) ou quando não asseguram a segurança vital (Hobbes), a sublevação é iminente. Os fenômenos da Primavera Árabe, inclusive pelos aspectos religiosos envolvidos, podem ser pensados numa outra lógica de constituição do Estado e sem as mesmas preocupações e princípios do Estado moderno ocidental, mas mesmo assim, a pergunta sobre o que gera adesão ou reprovação ao governante é uma questão central nas obras e nos processos históricos da Primavera Árabe.
CPFL Cultura – Com a popularidade em queda, a presidenta Dilma Rousseff teve de recorrer ao seu conselheiro de campanha, o marqueteiro João Santana – e não ao seu conselho de ministros –, para desenhar uma reação à crise. À luz de O Príncipe, o que isso simboliza a respeito da relação entre representantes, seus conselheiros e seus representados?
José Alves de Freitas Neto – Parece-me que a questão a atormentar a presidenta é a mesma que Maquiavel registrou no Príncipe: o problema não é a conquista do poder, mas a sua manutenção. Dilma sofre um desgaste e com a possibilidade do pior que pode ocorrer com um político: a infâmia. Um governante, por caminhos tortuosos, em geral busca a glória. Ela teve seus instantes de glória, mas desde 2013, mesmo sendo reeleita, há uma demanda que ela não consegue contornar. Não posso ser taxativo sobre o que será o futuro e se ela demonstrará capacidade para reagir aos maus tempos, mas posso dizer que recorrer ao marqueteiro é uma forma de recorrer a questões postas por Maquiavel: o povo julga pelo que vê. A disputa entre Dilma e os opositores não é em torno do “real”, mas em como as coisas são vistas. Talvez nem estejamos à porta de uma catástrofe e nem próximos do paraíso, mas é esta batalha que está sendo travada – o jogo das aparências que assegura a continuidade ou não de um projeto de poder.
CPFL Cultura – Ainda sobre as obras escolhidas, o que o modernismo de Mário de Andrade diz sobre nosso pós-modernismo atual? É possível calcular a distância entre o Brasil pensado pelo autor de Macunaíma (um país ciente de suas raízes, de suas origens, de sua linguagem, suas misturas, seus experimentos, sua expressão artística e sua riqueza oral) e o Brasil real, arcaico, arrogante, urbanizado às pressas, padronizado?
José Alves de Freitas Neto – Sobre Macunaíma e Mário de Andrade: a questão da convivência do passado e as encruzilhadas da modernidade são fundantes das explicações que encontramos no país. O passado está
sempre vivo, não é extirpado e os valores que construíram a tradição brasileira e seu modo de interpretar-se também estão presentes. Como a sociedade brasileira é tão seduzida pelo discurso do futuro e, paradoxalmente, tão arraigada a práticas que sinalizam como uma resistência às mesmas lógicas modernizadoras. Talvez o Brasil seja, como o restante da América Latina, pós-modernos, antes de sermos modernos. A ideia é do antropólogo Néstor Canclini e ajuda a compreender a ambivalência de regimes e tradições que são constitutivas de nossa cultura e que devem ser vistas e reinterpretadas em nosso cotidiano.
CPFL Cultura – E em relação a Borges, é possível dizer que o mundo real, labiríntico, repetitivo e nonsense de hoje compete ou supera a realidade imaginada pelo gênio argentino?
José Alves de Freitas Neto – No conto “O Jardim de Veredas que se bifurcam”, Borges narra uma fantástica história de um antigo governador chinês, Ts’ui Pen, que abandona sua família, o poder e se tranca para escrever um texto que, após 13 anos, quando ele morre, é uma vergonha para toda família – o texto não se articula, com anotações contraditórias. A obra, execrada pela família, ressurge um século depois num caminho improvável de um descendente de Ts’ui Pen, que é um espião alemão na Inglaterra e que encontra um sinólogo quando está em fuga após ser descoberto. Após um diálogo, o texto execrado e o olhar para o jardim começam a fazer sentido e se explicar: livros e jardins são labirínticos – cada vez que um homem encontra uma bifurcação escolhe um caminho que será sucedido por outros e abandona outras trilhas. O livro de Ts’ui Pen opta por todos, por isso a impossibilidade de uma única ordem e o fiasco de seu texto. Ts’ui Pen lida com uma série de tempos: convergentes, divergentes, paralelos, enfim, que às vezes se encontram e por séculos se ignoram. A história lida com eventos singulares e suas percepções em um determinado tempo e, para questões singulares, devemos encontrar respostas singulares. Os processos históricos não seguem um processo definido, mas tampouco vivem ao sabor de uma compreensão metafísica. Compreender o outro, apartado de nós no tempo e no espaço, é um exercício quase insuportável e impenetrável. Mas mesmo assim, um exercício estimulante como o livro da personagem do conto borgeano. O resultado não sabemos, mas esses caminhos históricos se adequam à recomendação final do texto de Borges: “deixo aos vários futuros (não a todos) meu jardim de veredas que se bifurcam”. O que motiva sua permanência e suas bifurcações escapa às nossas respostas, pois sempre as reinventamos diante do próprio viver. Para responder diretamente: Borges inventa narrativas paranoicas e a sociedade parece normal em sua superfície, mas basta aprofundar para percebermos que a atmosfera conspiratória e labiríntica é difícil de ser desvendada ou mesmo explicitada como sendo mais ou menos verdadeira do que a realidade. E esta é a força da narrativa literária: pode instaurar o fantástico que nem sempre é superada diante da própria realidade.