cafe filosófico

CAFÉ FILOSÓFICO | Ética em Deleuze | Luiz Orlandi

por Fernanda Bellei

A virtuosidade da filosofia de Deleuze ganhou vida em cada palavra do filósofo Luiz Orlandi, durante a palestra Ética em Deleuze, realizada no Café Filosófico em Campinas, no dia 29 de agosto de 2008, encerrando o módulo Deleuze: uma filosofia aberta aos encontros.

Veja entrevista realizada com Orlandi sobre a filosofia Deleuzeana.

Deleuze afirma que “não há obra que não indique uma saída para a vida, que não trace um caminho entre as pedras”. Como podemos interpretar essa afirmação? Esta não seria uma atitude de correção da vida?
Deleuze diz isso recorrendo não simplesmente à relação entre as obras e certas engrenagens da vida empírica, mas é que as obras têm um poder de criar na própria vida empírica os entretempos que elevam esta vida empírica a dimensões nem mesmo sonhadas.

Como Deleuze distingue vontade de poder e vontade de potência?
Isso é muito importante, porque a vontade de potência implica uma forma superior de entrega a obra que se está fazendo e ela indaga a respeito daquilo que efetivamente está querendo em nós, ou seja, quando eu digo: eu quero tal coisa, ou tenho isso ainda é um projeto da consciência ao passo que, a vontade de potência diz respeito a algo que em mim está querendo e desse algo eu não tenho plena consciência. É algo que remete a forças que eu não estou controlando. Ora, a vontade de poder está nesse nível de uma consciência que põe sua vontade psicológica subjetiva acima de outras coisas, ou então tem consciência de uma correlação de forças e quer impor-se nessa correlação de forças sem, uma intenção, sem algo intenso nela que leve a constituir um estado superior a minha vontade psicológica.

O que existe no pensamento de Deleuze que atrai tantas atenções no mundo contemporâneo?
Existem dois níveis a serem considerados. Existem aqueles que transformam o pensamento filosófico em ‘megas-opiniões’, em jogos variados, de interesses até mesquinhos, individualistas e narcisistas; e existem aqueles que fazem da obra de um filósofo, no caso de Deleuze, um árduo trabalho de atenção conceitual. E por outro lado, existe uma coisa importante que é o contato da não-filosofia com o pensamento filosófico, que é um contato estranho e extremamente importante. Como nós mesmos encontramos na música, por exemplo, uma atração intensa e não somos músicos, esse tipo de atração é importante para a vida de cada um, assim como a atração que muitos têm por um pensamento novo. Embora não haja em mim, por exemplo, um domínio da música e, todavia, sou tomado por ela e isso produz em minha vida entretempos importantes, assim também há todo um interesse por Deleuze que não é um fingimento intelectual, mas mesmo vital, já que se encontra ali um pensamento autenticamente voltado para uma dramaturgia conceitual não estranha às dramaturgias vividas.

Como Deleuze pensa o mundo a partir da lógica da mudança, do devir?
Em Deleuze é difícil encontrar uma visão do mundo. O mundo é um cruzamento, é um ovo. Ora, no mundo você tem as estruturas duras, você sistemas fortes, um capital financeiro dominante… Mas há pulsações, há uma variabilidade permanente. É essa complexidade que impede que você impinja a ela uma visão de mundo que seja ou catastrófica ou conservadora, seja lá o que for. Deleuze tem o mundo como uma indagação permanente a ser levada a cabo a cada encontro. É preciso, apesar de tudo, ter fé para que isso seja possível. Essa crença Deleuziana é um dos tópicos mais difíceis de se desvendar, pois não é uma crença simplesmente caudatária das crenças religiosas, é uma crença que leva você a perguntar pelas próprias razões e ainda ser possível acreditar no mundo, tendo sempre a mesma consciência que ele tinha quando desenvolveu as análises a respeito da obra de Akira Kurosawa – o mundo é uma problemática que vale a pena ser cuidada.

Como Deleuze une os afetos e a razão em sua filosofia?
Vamos puxar o termo razão para a idéia de pensar. Ora, os afetos é que nos obrigam a pensar. Essa é a grande contribuição de Deleuze para a filosofia: o sujeito já não é tido como origem voluntária do ato de pensar. Pensar é algo que se impõe ao pensador, ele é um pensador paciente daquilo que força o a criar. Por isso existe a idéia de um recomeço permanente em busca da inovação e que você precisa retomar este ato criativo, mas sempre sabendo, sempre tendo a experiência, de que é como se fosse o chicote inicial da problemática que te toma.

Durante a palestra, você cita a frase: “não podemos deixar a palavra criação ser um monopólio de Deus”. Qual era o pensamento Deleuziano sobre o teísmo?
Ele captura, prolonga e ‘vivifica’ uma filosofia da imanência absoluta, então não há porque recorrer a um Deus transcendente em Deleuze. A palavra criação fica nesse jogo difícil, pois ela foi ligada a uma iniciativa de vida. Ora, essa potencialidade criativa já existe, cabe a gente fazer o esforço de recomeçar o novo, sabendo que esse novo não é um monopólio do sujeito.
Qual é a singularidade da ética em Deleuze?
Isso é uma coisa importante. Vamos voltar um pouco e pensar que a ética, em última instância, pelo menos do ponto de vista de uma das dimensões constitutivas do individuo, é um cuidado permanente com sua essência singular. Eu preciso fazer um esforço permanente para que os encontros elevem a minha potência de viver ao ponto que eu possa transformar as paixões, porque eu vivo no mundo das paixões, dos encontros casuais, e pelo menos criar as condições para que eu viva paixões alegres, porque elas me dão um sinal de que minha singularidade, minha essência singular, ou, vamos dizer, meu grau de potência se engrene com o aumento do meu poder de ser afetado. Quanto mais alegres forem esses encontros, mais eu tenho oportunidade de acionar uma paixão no sentido de uma atividade. Então, eu recupero aquilo que é importante, que é a potência de agir e não apenas de ser paciente. Essa potência de agir se espalha como potência de pensar, como potência de sentir e de me engrenar com virtualizações que me levem a compor, nesses encontros, um terceiro indivíduo que seja mais potente que eu mesmo.