A volta do sagrado: superando a crise
O escritor Thomas Mann, morto em 1955, não tinha tido a chance de conhecer a música pop quando escreveu o seguinte trecho, no texto “A Missão da Música no Mundo Moderno”: “A música é um grande mistério.
Em virtude de sua natureza sensual-espiritual e da surpreendente união que ela realiza entre a regra estrita e o sonho, a razão e a emoção, o dia e a noite, ela é sem dúvida o mais profundo, o mais fascinante e, aos olhos do filósofo, o mais inquietante dos fenômenos (…) A palavra ‘harmonia’ significa música, mas apenas secundariamente; originalmente, quer dizer matemática. Mas o mundo não é todo ele acordo e harmonia de esferas; ele possui tendências irracionais e demoníacas que os gregos não desprezavam, mas procuraram dominar e integrar em sua religião. Assim o culto de Eleusis adorava as forças obscuras do mundo inferior (…) Se o mundo é música, inversamente, a música é o reflexo do mundo, de um cosmos semeado de forças demoníacas. Música é número, a adoração do número, é álgebra ressonante. Mas a própria essência do número não conterá um elemento de mágica, um toque de feitiçaria? A música é uma teologia do número, uma arte austera e divina, mas uma arte em que todos os demônios estão interessados e que, entre todas as artes, é a mais suscetível ao demoníaco (…) E os sacerdotes e mestres da música são os iniciados, os preceptores desse ser duplo, a totalidade demoníaco-divina do mundo. É a esperança de uma humanidade que, ao invés de reprimir e portanto exasperar o irracional, aceita francamente, venera e portanto santifica essas forças demoníacas e coloca-as ao serviço da cultura”.
Mas a sua definição descreve perfeitamente a cultura pop: se no ocidente a cultura judaico-cristã não foi hábil em integrar as forças negativas na vida moral da sociedade, a cultura de massa ocupou-se disso, encarregando a música, o cinema, a literatura, os quadrinhos e as outras artes de trazerem para a vida moderna os deuses turbulentos do passado. Pode-se especular que, após a segunda grande guerra, e na impossibilidade de um conflito aberto global que não destruísse o mundo, a cultura popular se encarregou de encenar todos os mitos de embate, destruição e redenção que (se) alimentam (d)as mitologias, criando uma espécie de “folclore sintético”, onde os arquétipos mais profundos da humanidade se mantêm presentes e influentes.
Hoje, em plena crise econômica – que se soma à crise de valores na profunda inquietação da humanidade –, religiosos, pensadores e artistas vêem o ser humano com otimismo, encarando esse abalo profundo como uma purgação necessária, mas já enxergando a luz no fim do túnel. Ao mesmo tempo, a importância crescente das redes sociais virtuais na internet e em outros suportes tecnológicos definem novas e pulsantes arenas de convívio e de debate, como a ficção cyberpunk já esboçava desde a década de 80 do século passado, criando espaço para a convergência de tecnologias atuais e ancestrais, de conteúdos sagrados e profanos, num processo acelerado de revisão e integração de tudo que é humano.