Madame Bovary e a reinvenção da mulher: entrevista com a historiadora da Unicamp Margareth Rago
O desfecho é conhecido. Entediada com a rotina pequeno-burguesa, uma dona de casa bonita e provinciana, casada com um médico de encantos medianos e vida sedentária, recorre à literatura e ao sexo para fugir das convenções do matrimônio e da maternidade. A angústia e o confinamento a levam ao adultério e à desilusão. O trágico destino de Emma Bovary é um marco do realismo literário.
Mas o que a obra, publicada pelo escritor francês Gustave Flaubert em 1857, diz sobre o mundo atual? A pergunta será levantada pela historiadora Margareth Rago, professora da Unicamp, durante o Café Filosófico CPFL sobre “Madame Bovary de Flaubert e as tiranias da intimidade”. O encontro, na sexta-feira, 10/04, às 19h, com transmissão online no site cpflcultura.com.br/aovivo, faz parte da série de debates “Os clássicos da literatura e o cotidiano”, que tem a curadoria do historiador José Alves de Freiras Neto.
“Um ponto a ser abordado é a questão da tirania do cotidiano, da vida repetitiva e monótona, do tédio e da depressão que isso produz. O outro é a questão de gênero, o fato de ela ser mulher. Isso faz toda a diferença na história.”
Autora de livros como “Do Cabaré ao Lar” e “A Aventura de Contar-se”, Rago vê na obra uma crítica de Flaubert à sociedade burguesa, privatizada e esvaziada, de sua época. Mas as formas como os homens driblam suas convenções são uma coisa; outra é quando se trata de uma mulher. “Emma Bovary tem um incômodo, mas a saída desse incômodo, pelo amor e pelo sexo, é um problema”, diz. “O papel da mulher na época é ficar dentro de casa e cuidar do filho. Os homens circulam e têm acesso ao espaço público e cultural, aos prazeres, aos restaurantes. É uma época de predomínio da ideologia da domesticidade, dos discursos que afirmam cientificamente que as mulheres nasceram para serem mães e para cuidarem do lar e da família, apesar da crescente entrada da mulher no mercado de trabalho.”
Como pano de fundo da obra, lembra a especialista, está a ascensão de uma medicina que referenda uma suposta superioridade masculina. Às mulheres, cujo corpo é distinto do masculino, caberia dedicar-se à maternidade e evitar circular pela esfera pública para não contrariar a sua “natureza” doméstica. Por esse raciocínio, as mulheres eram consideradas pejorativamente imaginativas e pouco aptas a pensar, a ler ou a escrever. Quando o faziam, era por meio de delírios. Debate moral da época, que de certo modo ainda persiste, dava ênfase ao trabalho quando se discutia a masculinidade e ao sexo quando se trata do lugar das mulheres. Os desviantes do sexo masculino eram vistos como “delinquentes, enquanto as do sexo feminino seriam “degeneradas”.
“Madame Bovary fala disso. Flaubert considera que ela mal sabe ler. Ela delira, segundo a construção do autor. Tem fantasias retiradas dos livros que a levam à decepção. Já os homens são práticos, sabem discernir. Por isso devem comandar. Esse confinamento é caracterizado como uma forma de tirania da intimidade. Tem um peso para o homem e outro para mulher. Para ela, é um sofrimento sentir-se aprisionada na esfera privada e tudo o que isso implica, como vemos no romance.”
Ao atualizar a obra, Rago diz observar com receio o fortalecimento de grupos religiosos e, como consequência, o retorno de discursos discriminatórios sobre “vadias” e “mulheres para casar”. Diz estranhar, por exemplo, que a palavra misoginia (desprezo ao feminino) seja conhecida, enquanto a filoginia (amor ao feminino) mal seja falada no debate público.
Em contrapartida, vê no movimento feminista, fortalecido a partir do século 20, um impulso ao processo de ressignificação de ideias, valores e empoderamento. Hoje, afirma, o assédio é relatado, denunciado, punido – e ofensas de gênero são não apenas rejeitadas como rebatidas. “As mulheres que se negam a casar ou ter filhos não são consideradas monstros. Nossa época não comporta essa ideia.”
Segundo a professora, “o mundo continua machista, porém existem brechas”. “Muita coisa mudou de 50 anos pra cá. Temos a lei Maria da Penha e, agora, a lei que tipifica o feminicídio.”
Para ela, Bovary pode ser lida como exemplo de quem não se conforma com um papel predefinido e que busca desesperadamente saídas para dar sentido à sua vida e torna-la vivível, prazerosa, interessante. De acordo com a professora, para navegar nas ondas da modernidade líquida – uma referência ao sociólogo Zygmunt Bauman – e de uma realidade que muda o tempo todo, a reinvenção da subjetividade é hoje um imperativo. “Se a pessoa não se atualiza, não se redimensiona, acaba falando grego. O choque geracional é muito forte. Nossos avôs suportavam o tédio de uma vida calma e do casamento que podia durar 70 anos. Hoje a instabilidade é grande. Devemos surfar, navegar o tempo todo porque o capitalismo neoliberal, ou a sociedade de controle, como define o filósofo Gilles Deleuze, assim o quer. Pede indivíduos flexíveis e não “corpos dóceis”, sedentários. Pede circulação, mudança, deslocamento.”
Foto: Fernando Frazão/ Agência Brasil